Interessa-me a fotografia que incomoda”, sublinha Mário Cruz, já o rio da conversa com a VISÃO fluía para um fim. Sabíamos da vocação do fotojornalista para águas profundas, desde que fez sua a missão de revelar os meninos escravos Talibes, no Senegal, trabalho distinguido pelo World Press Photo 2016 na categoria Temas Contemporâneos. Mas qualquer metáfora se afunda, queda e inútil, perante o seu novo trabalho, Living Among What’s Left Behind (Vivendo Entre o que Foi Deixado para Trás): são imagens de uma comunidade cercada, arrastada, esmagada por plásticos coloridos, detritos inomináveis, tábuas ressequidas, zincos raspados, restos escatológicos. Há crianças de chinelas a brincar no esgoto, veem-se adultos condenados a uma eterna respigação – com as torres limpas e reluzentes de Manila, vitaminada pelo crescimento económico e pelo boom demográfico, em fundo. O inferno, registado a preto-e-branco mas também a cores (é a primeira vez que Mário fotografa a cor), é apresentado no Palácio Anjos, em Algés, desde sexta-feira, 5, e a partir de dia 27 na exposição World Press Photo 2019 (mais uma vez em parceria com a VISÃO), no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa – aí, o fotógrafo fará uma sessão de conversa com o público português no dia de inauguração.
Mário Cruz foi despertado por descrições de “ondas de lixo que chegavam às casas das pessoas”. No terreno, viu que era uma realidade com décadas, não uma monção descontrolada. O tal cenário negro do ambiente futuro sufocado por plásticos? Já está a acontecer ali, descobriu. Facto: o rio Pasig já não é o rio saudável que corria ao longo de uma vintena de quilómetros junto da capital filipina. Em 1990, foi declarado “biologicamente morto”, quando os níveis da carência bioquímica de oxigénio dispararam. Facto: a Comissão de Reabilitação do Rio Pasig, criada em 1999, recolheu, desde 2012, mais de 27 milhões de quilos de resíduos sólidos que aí boiavam. Facto: as margens e os estuários do Pasig, afogados debaixo de camadas de resíduos industriais, fervilham de vida. Aí, instalou-se uma sociedade chegada em busca de um futuro melhor mas esquecida nas casas frágeis e ilegais, construídas com o lixo que desagua no rio. Mário Cruz estudou previamente este contexto, mas a realidade chocou-o: um labirinto poluído a circular por Manila, cidade à beira-rio tal como a sua Lisboa. “O que não faltam são imagens superficiais de poluição extrema no mundo, que, às vezes, até consumimos de forma gratuita. Também por isso, no meu trabalho estão mais presentes as pessoas.” E confessa: “Elas pareciam estar misturadas, camufladas, no cenário e na confusão.” Como a do densamente povoado estuário Magdalena: “Tem essa capacidade de nos fazer pensar que já nem estamos cá, no planeta Terra.”
“Nunca houve um plano, uma visão de futuro para estas comunidades. Os números [de quilos de lixo] são tão expressivos que custa a acreditar, mas eu via-os todos os dias. Alguém com um objeto na mão, num lugar onde não existem caixotes do lixo, esgotos, sanitas, que vive, por vezes, com mais gente, em casas com seis ou oito metros quadrados. Eles não têm outra forma de gerir os seus resíduos…”, acusa o fotojornalista, colaborador da agência Lusa, que faz estes projetos a título pessoal. “Estamos a falar de pessoas que não sabem se vão chegar ao dia de amanhã”, sublinha. E é aí que o fotógrafo fala no “círculo vicioso do lixo”: “É dramático perceber que o problema é, ao mesmo tempo, uma solução para muitas famílias. Aquele lixo no rio Pasig é apanhado e vendido, como matéria para reciclagem, por muitas famílias, para proporcionar-lhes dinheiro para comprarem comida, cujos resíduos deitam, depois, ao rio novamente.” A mesma água suja é usada como banheira, cozinha, casa de banho, tanque de roupa.
Mas a normalidade tem a força das correntes: “A sociedade filipina aprendeu a viver com esta realidade. Isso incomodou-me profundamente: eu tinha de andar no meio do lixo do rio para fotografar e percebia que o que era uma experiência avassaladora para mim era encarado com naturalidade total pelos outros; é o seu dia a dia.” A “experiência avassaladora” vai ser evocada por entre as 40 fotografias (e vídeos e colagens) da exposição Living Among What’s Left Behind: para contemplar a fotografia vencedora do prémio World Press Photo 2019, esse menino na jangada de pano ancorada no entulho, o público terá de percorrer um chão de lixo. “A exposição não é uma viagem agradável, mas é uma viagem necessária. E essa é a mensagem: já não temos a desculpa de que não sabemos e nada vimos.”