Quem sofre de hemocromatose hereditária tem duas cópias de um gene defeituoso que faz com que o ferro se acumule nos principais órgãos do corpo, o que pode provocar problemas de saúde graves. Como não apresenta manifestações específicas, esta doença é, muitas vezes, confundida com sinais normais de envelhecimento e, por isso, o diagnóstico é, frequentemente, feito demasiado tarde.
“Os primeiros sinais podem ser fadiga, dor abdominal ou dores articulares, e, nalguns casos, a deteção de alterações nas análises da função do fígado que não são explicadas por outras causas como o abuso de álcool ou o fígado gordo”, esclarece Graça Porto, responsável pelo Centro de Referência de Hemocromatose no Centro Hospitalar do Porto.
Além de existir a possibilidade de vários tecidos ficarem lesionados, como resultado da acumulação de ferro, existem, ainda, consequências mais graves do diagnóstico tardio da hemocromatose, que incluem a cirrose hepática – pode originar cancro do fígado -, a diabetes (porque o pâncreas é afetado), disfunção cardíaca, doença articular grave e ainda disfunção sexual quando a hipófise é afetada. Contudo, se a doença for despistada precocemente, o seu tratamento torna-se fácil e eficaz.
Diagnóstico feito por suspeição
O diagnóstico é simples, mas implica uma forte base de suspeição, explica Graça Porto. A partir dessa suposição, é realizada uma análise ao sangue com determinação de dois parâmetros indicativos de sobrecarga de ferro, um que reflete o excesso de ferro circulante e outro que mostra o aumento dos depósitos de ferro nos tecidos.
Depois de se repetirem as análises e serem confirmadas as duas alterações, é realizado um teste genético que, em princípio, vai corroborar a presença de hemocromatose. “Felizmente, a doença está associada a uma mutação que explica 90% dos casos e, por isso, é fácil confirmar a sua origem genética”, diz a médica.
Se, em situaçãoes raras, essa mutação não for a causa da doença, mas houver uma forte suspeita de grande acumulação de ferro no fígado (confirmada através de uma ressonância magnética), é necessária a realização de testes mais sofisticados.
Uma “pescadinha de rabo na boca”
Se a falta de diagnóstico e tratamento precoce da hemocromatose podem provocar problemas de saúde mais graves, porque é que ainda não se estabeleceu uma idade obrigatória para a realização de um diagnóstico? “Essa é uma das questões que tem suscitado mais discussões na comunidade médica e científica”, responde Graça Porto, que diz ainda não se ter chegado a um consenso relativamente à idade ideal para se realizar o diagnóstico da doença.
Contudo, nas últimas décadas tem-se tentado demonstrar a utilidade da realização de um rastreio genético familiar em adultos assintomáticos. “O rastreio genético na população em geral não está recomendado porque nem todos os indivíduos que têm a mesma mutação irão expressar a doença e por isso, não se deve impor um “rótulo” de hemocromatose a pessoas que ainda não têm a doença e, eventualmente, nunca a terão”, diz a médica.
Além disso, ainda não se sabe como e quando devem ser realizadas as análises para despistar a doença, já que não existem dados epidemiológicos suficientes que consigam responder a essa pergunta.
Apesar da preocupação demonstrada pela Federação Europeia das Associações de Doentes com Hemocromatose (EFAPH), que tem feito vários esforços para introduzir o problema a nível europeu, a resposta da Comissão Europeia é que não pode implementar recomendações sem os estudos estatísticos que demonstrem o benefício do rastreio. “Por outro lado, não se pode provar que é benéfico sem implementar programas de rastreio, ou seja, é uma “pescadinha de rabo na boca””, refere Graça Porto.
Contudo, já existe uma recomendação formal para rastreio em familiares de 1º grau de doentes com hemocromatose comprovada.
Origem comprovada de problemas mais complexos e graves
O tratamento da hemocromatose consiste numa fase intensiva, na qual são realizadas semanalmente flebotomias – remoção de sangue – de 400 ou 500 ml até os níveis de ferro ficarem normais. “Isto pode demorar desde aguns meses até vários anos, dependendo da quantidade de ferro que o doente acumulou”, diz Graça Porto. Quando a doença é detetada numa fase pré-sintomática, este tratamento é relativamente fácil.
Caso isso não aconteça, as consequências podem ser devastadoras. Um estudo publicado no BMJ e no The Journals of Gerontology: Medical Sciences no início deste ano concluiu que as pessoas com hemacromatose desenvolvem mais doenças à medida que envelhecem, aumentando o risco de morte prematura. Os investigadores da Universidade de Exeter, no Reino Unido, analisaram dados de quase 3 mil pessoas, entre os 40 e os 70 anos, com esta mutação genética e perceberam que um em cada cinco homens e uma em cada 10 mulheres com este gene a desenvolvem doenças no fígado, cancro, diabetes, e osteoartrite ou artrite reumatoide.
Os mais atingidos em Portugal e no mundo
De acordo com Graça Porto, a hemocromatose hereditária é frequentemente detetada em homens a partir dos 40 anos, embora a probabilidade de afetar mulheres seja a mesma. Além disso, alerta a médica, existem casos de jovens adultos diagnosticados com a doença.
Em Portugal, a prevalência é maior no norte relativamente ao sul, e o mesmo acontece na Europa em geral, e em países como a Austrália, os EUA e o Canadá. Esta distribuição geográfica particular pode, de acordo com a médica, ter a ver com as semelhanças genéticas dos povos do norte e do sul.
Contudo, o número de pessoas que efetivamente expressam a doença não é conhecido porque não existe ainda qualquer registo nacional ou internacional para a doença.