Um dia, é o salmão. Outro, os mirtilos. Depois, chia. Açaí. Goji. Maca. Abacate. Quinoa. As comidas da moda. Chamam-lhes superalimentos – termo que pretende dizer muita coisa e que na prática não significa nada (a União Europeia, aliás, proibiu que se use a designação na venda de um produto, a não ser que se consiga provar que os seus efeitos no organismo são particularmente benéficos). Mas uma coisa é certa: quanto mais exótico for, mais super soa.
É aí que surgem os problemas. Os países ricos têm descoberto supostos produtos milagrosos longe de casa, em regiões menos desenvolvidas. Alimentos que são muitas vezes uma parte importante da dieta dos povos locais. Em alguns casos, o súbito aumento da procura, aliado ao aparecimento de novos produtores, torna os preços mais instáveis, e as populações não se conseguem adaptar à montanha russa de subidas e descidas. Há situações em que é o ambiente que sofre. Há até histórias de tráfico de armas associadas ao transporte de alimentos. E de financiamento de traficantes de droga, como acontece com o abacate. O fruto mexicano, usado no guacamole, em ceviches e em saladas, tem sido um sucesso na Europa, que lhe descobriu riquezas nutritivas importantes (a começar pelas gorduras monoinsaturadas, que segundo alguns estudos ajuda a reduzir o “colesterol mau”). Chegou, viu e venceu. O que pouca gente sabe é que o abacate se tornou tão valioso devido à procura que é hoje uma importante fonte de rendimento de gangues de droga mexicanos. No estado de Michoacán, a região que produz mais abacates em todo o mundo, e onde o fruto ganhou a alcunha de ouro verde, vários grupos criminosos montaram um complexo esquema de extorsão dos produtores. Um dos maiores cartéis de droga do país, os Caballeros Templarios, por exemplo, exige a cada agricultor uma “taxa de proteção”: o equivalente a €0,9 por cada dez quilos de abacate produzido, mais €99 por hectare – e €215 no caso de ser para exportar. Quem não paga, corre o risco de ter os filhos raptados e mortos (entre 2006 e 2015, houve 8 258 homicídios em Michoacán). Entretanto, nos últimos quatro anos, os produtores de abacate organizaram-se em grupos de autodefesa, armados com metralhadoras, transformando a região num palco de guerra.
O custo da globalização
Uma das maiores estrelas recentes das modas alimentares é a quinoa. Originária do Peru e da Bolívia, onde há muitos séculos serve de base alimentar aos mais pobres, foi tema de um artigo no jornal britânico The Guardian, que acusava o apetite ocidental por este alimento (que não é tecnicamente um cereal) de ser responsável por um enorme aumento dos preços. Por causa disso, argumentava-se, as populações locais já não conseguiam comprar quinoa.
A crer numa investigação do Centro de Comércio Internacional, uma agência das Nações Unidas e da Organização Mundial de Comércio, a febre da quinoa melhorou, na verdade, as vidas dos agricultores peruanos, e injetou dinheiro na economia do país, beneficiando a sociedade como um todo. A única desvantagem, aponta o relatório, publicado em maio de 2016, é que os agricultores estavam a concentrar-se nas espécies mais valorizadas comercialmente e a abandonar outras, reduzindo a variedade disponível.
Mas os preços, entretanto, começaram a cair – agricultores da Europa e da América do Norte apanharam o comboio da quinoa, produzindo de forma mais barata e eficiente (usando, claro, maquinaria pesada para arar a terra, em vez de bovinos). Em resposta à queda de valor, os produtores do Peru e da Bolívia começaram a reter o produto, na esperança de que os preços subissem novamente. E os outros, então, fizeram o mesmo. O braço de ferro tem derrotados anunciados: o custo do quilo de quinoa já está abaixo do que é considerado o mínimo para um estilo de vida condigno nos Andes. Os agricultores originais não têm forma de competir com os novos adversários. Basta recordar que a batata também nasceu nesta região, mas globalizou-se, e hoje Peru e Bolívia nem se encontram entre os maiores produtores mundiais.
O pior peixe do mundo?
O caso da quinoa é de certa forma replicado por vários outros alimentos. Os consumidores urbanos descobrem exóticos produtos novos, e os locais acabam por deixar poder pagar por eles, trocando-os por outros, menos nutritivos. Nesta categoria estão vários alimentos indianos, como uma série de cogumelos selvagens, mas igualmente o açaí, a maca e a chia, da América do Sul.
O ambiente também fica, muitas vezes, a perder. A desflorestação da Amazónia, por exemplo, deve-se em parte ao cultivo de soja. Neste caso, os responsáveis não são propriamente quem opta por uma alimentação vegetariana – a maioria da soja acaba transformada em rações para animais. O consumo de água é outro problema: para produzir um quilo de abacate gasta-se 123 litros de água. E ainda há que somar a pegada ecológica do transporte, muitas vezes de um lado para o outro do planeta.
Mas talvez não haja uma situação tão trágica como a da perca-do-nilo. O peixe foi introduzido artificialmente, no final dos anos 50, no lago Vitória, em África, o segundo maior reservatório de água doce do mundo, com 69 mil quilómetros quadrados (mais de três quartos do território português). Sendo um animal enorme, que pode atingir dois metros de comprimento, logo tomou a posição de predador de topo, dizimando centenas de espécies nativas, base de alimentação dos povos da Uganda e da Tanzânia que viviam nas margens do lago. Hoje, segundo um relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), 80% da biomassa de peixe é constituída pela espécie invasora.
Por outro lado, o valor comercial da perca tornou-a incomportável para as populações locais, que se limitam a ficar com os restos do peixe, quase incomestíveis – a atividade, de grande escala, é uma indústria profissionalizada, controlada por grandes empresários. Em redor do lago, nasceram centenas de fábricas de processamento de perca, que substituíram as secas tradicionais, ao sol. Essas unidades modificaram por completo a região, levando à criação de minicidades improvisadas, sem as mais básicas condições de saneamento e onde muitas crianças acabam na prostituição.
Um documentário chamado O Pesadelo de Darwin (nomeado para um Oscar de melhor documentário em 2006), revelou esta realidade. E outra: os mesmos aviões russos usados para transportar perca para os supermercados europeus transportam, no regresso, armas. Na prática, a perca não alimenta só gente – também alimenta guerras em África.
Artigo publicado na VISÃO 1274 de 3 de agosto