Durante 22 anos, assinou documentários de natureza com o selo da prestigiada BBC. Depois de ser um dos diretores na primeira série de Planeta Terra, em 2006, ganhou a fama que lhe permitiu fazer duas séries de Planeta Humano e Life Story, todos programas premiados. Recentemente, aos 43 anos, deixou a casa onde cresceu e mudou-se para o canal da National Geographic (NGC). Tom Hugh-Jones estará, nos próximos três anos, a trabalhar numa série do mesmo género que o levará à Antártida. Entretanto, marcará presença em Lisboa no próximo sábado, 27, como palestrante de um jantar organizado pela Liga para a Proteção da Natureza. Falou com a VISÃO, a partir de Inglaterra, por Skype.
Porque deixou a BBC?
Foi uma decisão muito difícil, porque adorava lá trabalhar é o melhor sítio do mundo para quem quer fazer programas de vida selvagem. Mas recebi uma proposta do NGC e isso fez-me pensar que não queria estar toda a vida no mesmo emprego, no mesmo edifício a trabalhar com as mesmas pessoas. É bom experimentar mudar, explorar outras oportunidades e ver o mundo de outra perspetiva.
Não se pode dizer que seja uma perspetiva completamente nova, está a fazer a mesma coisa…
[Risos] Além disso, trabalho com imensos ex-colegas da BBC e o edifício fica a 50 metros de distância. Realmente, é uma companhia diferente, mas um trabalho muito semelhante.
Alguma vez sonhou fazer outra coisa?
Houve uma época em que estive muito envolvido na atividade de DJ e a compor dance music. Ainda faço um bocadinho disso e continuo interessado em música. Posso dizer que há um pouco de produtor musical frustrado em mim. Tenho bom ouvido, mas não sou um músico particularmente bom, por isso ainda bem que segui o caminho certo. Agora também estou interessado em dar mais significado à minha atividade, debruçando-me sobre temas como a conservação do planeta ou fazendo ajuda humanitária.
Nunca fez nada nesse sentido?
Estou ligado a uma ONG, a Survival International, mas nunca me envolvi diretamente. Posso fazer muito mais.
Ouvi dizer que a sua carreira começou quando ainda nem tinha entrado para a escola, na Colômbia. É verdade?
É, sim senhora. Os meus pais são ambos antropólogos e quando eu tinha cinco anos eles estavam a estudar uma tribo que vivia na Amazónia, na Colômbia, junto à fronteira brasileira. Fomos para lá durante um ano. Fui criado como uma criança da selva.
Como o Mogli, d’ O Livro da Selva?
Não fui criado por animais, mas vivi com uma tribo que comia papagaios e macacos e outras coisas do género. Portanto, foi uma experiência selvagem, de facto. E se uns pais nos levam a viver na Amazónia, pode imaginar-se como seriam as nossas férias…
Como eram?
Enquanto os meus amigos iam para a praia, nós íamos acampar, escalar uma montanha ou outra coisa qualquer, desde que fosse na natureza. Eles conheciam muita gente em vários pontos do mundo, então levavam-nos até eles e eram sempre sítios estranhos que envolviam muita caminhada [risos].
E agora, ainda tem esse tipo de férias com os seus filhos ou prefere as versões “tudo incluído”?
Os meus três filhos ainda são pequenos (o mais velho tem 10 anos). De qualquer forma tenho de iniciá-los nestas aventuras. Mas sabe como é por estes dias, eles estão muito agarrados à tecnologia os tempos já não são os mesmos…
Alguma vez voltou à selva onde viveu em criança?
Ao sítio exato voltei, durante um mês, com os meus pais quando tinha 15 anos e depois regressei à Amazónia várias vezes. O meu pai continua a lá ir, já faz quase parte da tribo [risos].
Alguma vez teve medo de animais?
Quando estive na selva, nem pensar, pois havia que caçá-los e comê-los. Tinha um macaco de estimação que era filho de outra macaca que foi capturada para a nossa alimentação. Mas atenção, há animais que acho mesmo repulsivos.
Tais como?
Escorpiões. Se alguém me desse um para agarrar, não daria parte fraca, mas quando olho para eles, acho-os mesmo nojentos. Por outro lado, o meu favorito é a orca, mas também gosto de animais estranhos, como polvos e camaleões. E tenho de dizer que adoro gatos. Tem tudo a ver com a forma como eles são majestosos.
Tem gatos em casa?
Dois. Até desenvolvi uma teoria de que um grande programa de vida selvagem só o é, realmente, quando entra um gato.
Quando voltaram todos para Cambridge, havia alguma vida selvagem para apreciar?
Foi um choque cultural. Mas como tínhamos um lago no jardim, passava muito tempo a brincar com sapos e abelhas e aranhas. Também fazia coleção de osgas e de cobras.
Tirar zoologia em Bristol foi o caminho natural?
Entretanto, fui um adolescente normal, mais interessado em raparigas e em música do que nos animais. Mas acabei por ir para Bristol, onde a BBC fazia os documentários de vida selvagem, embora isso não tivesse pesado nada na minha decisão. Na verdade, não era muito focado na universidade, estava mais embrenhado na música de dança do que nos estudos.
Apesar de ter acabado a licenciatura, nunca trabalhou como zoologista?
Por sorte, comecei logo a trabalhar na BBC. Eles precisavam de uma pessoa com disponibilidade imediata para ajudar no festival de cinema selvagem, e eu disse logo que sim. Foi uma ótima introdução à indústria.
Imagino que, nas suas expedições, tenha oportunidade de ver com os seus próprios olhos como o planeta mudou nestes últimos anos.
Completamente. Isso foi gritante entre a primeira série de Planet Earth e a segunda sítios que eram selvagens e inacessíveis, agora têm estradas a cortá-los ao meio e antenas para telemóveis.
Com Donald Trump a governar um dos países mais poluidores do mundo, como olha para o futuro?
Acho-o muito assustador. Mas o que me assusta não é Donald Trump, somos todos nós a forma como vivo a minha vida, a forma como pessoas que conheço e se importam muito com a natureza vivem as suas vidas. Somos todos culpados. É fácil olhar para as pessoas que ainda são mais grotescas que nós. Bem posso dizer que me preocupo com as mudanças climáticas, mas depois vou de avião para Portugal. Fico envergonhado por não conseguir comprometer-me mais.
Quais são os seus maiores pecados?
Por exemplo, gosto demasiado do sabor da carne para conseguir desistir dela e já li muito acerca do impacto da sua produção no aquecimento global.
A natureza do seu trabalho mudou a forma de olhar para o ser humano?
[silêncio para pensar]. É uma pergunta interessante… [volta a pensar]. Não sei… acho que sempre fui um bocado animalesco no meu modo de viver. No entanto, ainda gosto mais de pessoas do que de animais, pois reconheço que fazem coisas incríveis.
Qual é o seu sítio preferido no mundo?
Por causa da minha infância, e porque já lá voltei várias vezes, gosto da selva. Mas adoro o deserto da Namíbia, com todos os animais que aparecem, sem que estejamos à espera: girafas, elefantes, leões. Indo aos sítios certos é como fazer um safari, com as lindas paisagens do deserto. E outro sítio é South Georgia, fica a quatro dias de viagem de barco à vela, para oeste das ilhas Malvinas, no meio do oceano Atlântico. Está lá a base de um projeto de investigação mas, à parte disso, é inabitada. Uma pessoa sente-se no último sítio da Terra e há uma enorme colónia de pinguins, albatrozes e todos esses animais que não se assustam com a presença humana, permitindo que andemos no meio deles como se nada fosse.
Qual foi o episódio mais sensacional que já produziu?
O que fiz na selva, porque significou muito para mim. Não filmei a tribo com que vivi, mas outras semelhantes. Estava muito preocupado com o que pensariam os meus pais, pois quando se faz televisão é para as massas, para ser excitante. Fiquei receoso que achassem a minha abordagem sensacionalista. Mas correu muito bem. Particularmente com uma tribo que nunca tinha contactado com o exterior, o que nos levantou uma delicada questão ética: se se escondem do resto do mundo, será legítimo mostrá-los? Mas um brasileiro que os monitorizava defendeu, com muita convicção, que devíamos filmá-los, porque o Governo estava a tentar negar a sua existência e entrar por aquelas terras adentro. A única forma de ajudá-los foi provar que eles existiam. E acabou por ter um grande impacto em todo o mundo.
Para fazer uma hora de documentário, quantos dias passa no terreno?
Por acaso fizemos essas contas enquanto filmávamos o Planet Earth II – uma média de 320 dias para gerar uma hora de programa, passando por cerca de 50 sítios diferentes.
Qual a parte mais complicada neste longo processo de produção?
É muito difícil quando as coisas não funcionam, mesmo que se estejam a fazer todos os possíveis. Se começa a chover, por exemplo, ou se o animal que tentamos filmar está sempre a 50 metros, não podemos inverter a situação. Lembro-me de uma vez estarmos a tentar apanhar gibões e para isso uma operadora de câmara foi para cima de uma árvore para filmá-los ao seu nível. Só que, no minuto em que eles a toparam, não se aproximaram mais dela. Passámos o mês seguinte a acordar às três da amanhã, atravessávamos a selva para descobrir onde é que eles estavam, a mulher subia à árvore ainda antes de ser dia, éramos mordidos por mosquitos e chovia. E todas as manhãs eles viam-na e fugiam. Finalmente, conseguimos umas imagens, mas não eram muito boas.
O que faz a equipa numa situação dessas: encolhe os ombros e volta no dia seguinte, ou desata a gritar de raiva?
Toda a gente que faz isto há algum tempo acaba por se habituar. Mas já houve alturas em que pensei que nunca mais ia trabalhar, com receio de que o produtor pensasse que o problema era meu e não das circunstâncias.
Quanto tempo leva um programa a ficar pronto?
Passamos, por norma, dois anos e meio no terreno, seis meses a preparar a ida e mais seis na pós-produção. O que se torna complicado, porque até neste campo existem tendências e há que pensar o que ainda será popular três anos depois.
A inovação tecnológica tem facilitado a vida a quem faz este tipo de documentário?
A definição da câmara, a possibilidade de filmar em câmara lenta, ou remotamente, com drones, permitem que se vá mais além do que se vê a olho nu.
Quando custa um documentário de vida selvagem?
Nunca estou autorizado a revelar isso. Mas digo-lhe que, se for de baixo orçamento, pode custar 50 mil libras [58 mil euros], só contando com as filmagens. Algo mais ambicioso pode chegar a um milhão de euros.
Sente responsabilidade acrescida por ser tão caro?
É assustador. Podemos gastar 100 mil euros numas filmagens e não se tratar de nada extravagante. Mas se quisermos chegar a sítios remotos, com quilos de bagagem, com a melhor equipa e equipamento, para captar momentos excitantes, isso vai custar imenso dinheiro. Estamos sempre a tentar que saia o mais barato possível. Muitas vezes acampamos em vez de ficarmos em hotéis ou carregamos as nossas próprias malas, porque isso significa mais um ou dois dias de filmagens. Mas o pior é que, no final, os animais podem não aparecer.
Entrevista publicada na VISÃO 1264 de 31 de maio