Arquivo
A rainha sem trono
Desde sempre, a mãe tinha declarado guerra total àquilo que ela chamava “indústria de mexericos” da monarquia britânica
O abraço
Ergui o livro que trouxe comigo e traduzi para português o título: “O sangue dos esquecidos.” Estêvão abanou a cabeça e sacudiu o vazio. Livro, meu irmão?
Lázaro e o cornudo
A morte é definitiva, ainda que a vida, como este escritório, seja toda ela um simulacro. A sua situação, contudo, pode alterar-se
O coiso
O que alimenta a mentira não é a qualidade da impostura. O que alimenta a crendice é o vazio da vida. Uma fake news pode compensar uma fake life
O barco morto
Nada daquilo me surpreendeu: é o dia a dia em qualquer estrada africana. Um homem equilibrando um barco numa mota, isso sim, já pode ser considerado um pouco invulgar
A solidão de Teodoro
Sente saudade de qualquer coisa, um pedaço da infância, o riso de Delfina, a gargalhada dos filhos. Nostalgia de algo que nunca houv
Um destino improvável
Só a vida é capaz de criar personagens assim, não apenas implausíveis, mas, mais do que isso, capazes de subverter a própria realidade
O incorretor automático
– Quem é a puta? – Tanto insistiu que perdeu a voz. A pergunta era retórica. Esmeralda queria apenas deflagrar um nome feio. As palavras podem ser balas. Puta, mil vezes puta
Querida Inteligência
A minha relação com a IA começou desta forma, discutindo sobre o tempo. Depois, passámos a conversar sobre Deus, a morte, o sentido da vida, receitas de bacalhau, tintas para cabelo
A assinatura póstuma
Sentou-se no degrau do pátio e foi falando como se não houvesse tempo. O filho tinha ido para a cidade e não mais voltara. Tinha-se perdido porque, nas guerras, os caminhos ficam todos iguais
A vingança
A morte do pai provocou nele um sismo interior, fundo o suficiente para que nem a mãe se desse conta, mas de tal forma poderoso que alterou por completo a sua personalidade
Uma prece à procura de um crente
Era nela o que mais resistia à velhice: os seus olhos escuros e brilhantes. O tempo tudo enrugava, menos o seu olhar
O Sol de Van Gogh
Antigamente, esquecia-me do nome das pessoas. Agora esqueço-me das pessoas. Outro dia comecei à procura do telemóvel, enquanto o utilizava para falar com o meu filho
A metafísica dos equívocos
Tudo acontece no momento certo, o que é preciso é deixarmo-nos ser abraçados pelo tempo
O café das almas perdidas
Sentei-me numa outra mesa, de frente para ela, com o mesmo espanto, quase religioso, com que me sento à varanda, na minha casa, para assistir ao nascer do sol
Carta a Putin
O vizinho sabe falar e escrever russo. Aprendeu quando, há meio século, estudou na falecida União Soviética, que Deus a tenha lá no cemitério das nações, onde enterram hinos e bandeiras
"Stage diving"
Nascimento acrescentou que, nas noites sem lua, as pessoas não têm sombra. Sem sombra, não correm o risco de serem arrastadas até águas profundas
O emigrante algorítmico
As pessoas complicavam e atrasavam os processos. Saltavam passos, tinham dúvidas, reclamavam. E sobretudo, erravam. Esse é o maior pecado da nossa espécie. Errar
A pedra faladora
Mostrou ao governador uma pequena pedra, da mesma cor que a sua própria pele, e com uma idêntica textura
Frutos Silvestres
O homem veste uma gabardina, umas calças de camuflado e botas militares. Caminha, em passadas largas e precisas