O Presidente Cavaco Silva ainda não se converteu, felizmente, à americanice do halloween. E não haverá abóboras com carantonhas iluminadas, nas janelas do Palácio de Belém. É pouco provável que uma chusma de bruxas e lobisomens bata aos portões da residência oficial do PR, pedindo bolos ou moedas. E não estamos bem a ver a primeira-dama, Maria Cavaco Silva, com um chapéu cónico enfiado na cabeça, a receber os zombies do movimento Que se lixe a troika. Por estes dias, os portugueses, cada vez mais ausentes dos protestos de rua, mudam de canal sempre que o Presidente aparece na televisão. Cavaco não serve para nada?
O que acontece, de facto, é que este Presidente conseguiu esvaziar, sobretudo no 2.° mandato, a função unipessoal do órgão de soberania chamado Presidência da República. Traumatizados pelos excessos do poder pessoal da ditadura, os nossos constituintes inventaram um híbrido semipresidencialista de checks and balances que distribuem, através de um sistema de contrapesos, os poderes do Estado. Nesta lógica, ambos, Presidente e Parlamento – por inerência, o Governo – têm legitimidade eleitoral. Mas a primeira revisão constitucional esvaziou de poderes o Presidente, deixando-lhe, apenas, o tudo ou nada. Ou seja, com menos capacidade de intervenção nas áreas da governação, o PR ficou com o poder de deitar abaixo o Governo, através da dissolução da Assembleia da República. Desta forma, a importância da Presidência da República ficou totalmente dependente da capacidade de influência, e da personalidade e do estilo do seu titular, isto é, na expressão feliz de Mário Soares, confinada à “magistratura de influência”. Ora, Cavaco Silva, um político de perfil executivo, nunca teve jeito para isso. E não funcionou.
A dúvida estará em saber, passados 40 anos sobre a revolução, se este sistema que não é carne nem é peixe estará, ou não, esgotado. Se não seria mais eficaz optar-se, claramente, por um modelo presidencialista ou parlamentarista. Com as vantagens e defeitos de um e de outro, qualquer das soluções seria mais eficaz e mais moderna do que a atual. Mas olha-se à volta e percebe-se por que razão este estado de coisas nunca mudará: o lugar de Belém continua a ser importante porque… a classe política precisa dele! Durão Barroso farta-se do Governo e acaba o mandato europeu? Tem ali um abrigo. Carvalho da Silva abandona o sindicalismo e reforma-se? Está ali um poiso! Marcelo Rebelo de Sousa não tem sucesso como líder partidário e está farto de ser comentador? Ali dispõe de um entretém! José Sócrates não tem mais hipóteses como governante? Ali está uma chance! António Costa tem o caminho tapado no PS? Tem ali uma aberta! António Guterres zanga-se com o País? Pode fazer ali as pazes! Sampaio da Nóvoa quer correr por fora dos partidos? Tem ali uma pista! Rui Rio está sem paciência para o PSD? Tem ali um cargo! Santana Lopes anda por aí e ninguém lhe liga? Tem ali uma tribuna! Em suma: todos os mortos vivos ali têm uma esperança!
Eis porque não se pode arejar o sistema, virar a mesa e acabar com o cargo de Presidente, tal como ele existe – como poder supremo mas sem o poder das chatices. Tirar aos políticos e autoproclamados senadores essa hipótese de fim de carreira é como retirar a um crente a ideia de vida eterna. Ora, se não houvesse uma forma de vida no além, o halloween não faria qualquer sentido.