O acórdão que fundamenta a decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a limitação dos mandatos autárquicos é uma charada formalista, hermética e contraditória que não cabe aqui analisar. O que nos interessa é a questão de fundo. Em nome dos valores republicanos da transparência e da renovação do pessoal político, a Assembleia da República legislou no sentido de impedir que os autarcas se candidatassem a mais do que três mandatos consecutivos. Mais do que a letra, é o próprio espírito da lei, assim entendido pelo senso comum, que o determina: três mandatos, ponto. E não mandatos em câmaras diferentes, consecutivamente, até ao fim da vida. A interpretação do TC coloca, assim, um problema de regime. Porque faz de Portugal uma monarquia encapotada. Uma república sem ética republicana. Ética que se baseia na renovação do pessoal político. Ética que encara a política, não como uma profissão, mas como um serviço. Serviço que está acessível a todos os cidadãos e não reservado ao monopólio de alguns “condes, duques e barões”, como nas antigas monarquias não democráticas.
Em nome dessa ética, o cargo de Presidente da República está limitado a dois mandatos consecutivos. E muito bem. A questão não se coloca, é verdade, para o cargo de primeiro-ministro. Mas isso porque se convencionou, e bem, que as próprias “leis do mercado eleitoral” impedem entorses à ética e à transparência: o desgaste inerente à natureza deste cargo impede, na prática, que um primeiro-ministro se aguente por mais do que um, dois, no máximo três mandatos (como os que o legislador quis impor, sem sucesso, aos autarcas…).
A argumentação dos que defendem que a vontade popular justifica tudo; que, se o povo quiser, tem o direito de eleger os mesmos, e que impedir as candidaturas permitiria vitórias na secretaria, não colhe. Porquê? Em primeiro lugar, porque esta decisão, isso sim, prejudica, na secretaria, os partidos – PS e BE – que deixaram de candidatar “dinossauros”, à partida, vencedores. E que ficam, agora, em desvantagem. Em segundo lugar, se o argumento da vontade popular valesse em casos destes, não seria possível reservar quotas femininas, para incentivar a participação das mulheres na política. Nem seria possível impedir a candidatura de políticos condenados e a cumprir pena. Os mecanismos de defesa da democracia, precisamente, não se esgotam no voto, mas requerem, por vezes, legislação orientadora de bons princípios, garantes da tal ética republicana.
Esta decisão do TC foi seguida por uma ainda mais ridícula: presidentes de juntas de freguesia que estejam, agora, agregadas, podem recandidatar-se sem ter, sequer, de mudar de autarquia. Vão sentar-se na mesma cadeira de sempre. Porque, formalmente, a junta mudou de nome. Sem mais comentários.
Este é o mesmo Tribunal que se esqueceu do princípio da equidade, tão invocado noutras ocasiões, no caso dos “despedimentos” na função pública. O argumento do princípio da confiança também pode ser aplicado aos privados. Tal como no setor público, alguém que é contratado por uma empresa privada também não está à espera de ser despedido. É por isso que, como escreveu Áurea Sampaio, nestas páginas, o princípio da confiança, acrescentado ao da equidade entre público e privado, pode, perfeitamente, agora, ser invocado, pelos desempregados, para recuperarem o seu emprego. É cada tiro, cada melro.