O caso de Ricardo Robles levantou uma onda de críticas sobre o comportamernto do ex-vereador e sobre a incoerência intrínseca entre o seu discurso político e a sua prática pessoal. Mas das teses ideológicas às antíteses comportamentais, podemos tirar, como ensina Marx, uma síntese possível: Ricardo Robles reconheceu implicitamente, e, praticamente, sem disso ter a consciência, a inexequibilidade das teorias que defendeu na campanha.
Peguemos numa foto do famoso imóvel de Alfama, tirada há dez ou, ainda pior, há três anos. O que vemos é um prédio de traça nobre, mas decrépito, a cair e a contribuir para a degradação de um centro histórico que gostaríamos de ver pujante e renovado. Chega um investidor, adquire o imóvel, reabilita-o e procura uma mais valia – ou, sem essa contrapartida, não tenhamos ilusões, o edifício acabaria por cair de podre. Ou seja, o prédio de Ricardo Robles foi o instrumento da negação das suas teorias: a reabilitação implica um retorno. E por isso não lhe passaria pela cabeça colocar os apartamentos em arrendamento a custo controlado, para habitantes locais mais desfavorecidos. Temos pena, mas é assim que funciona.
Diz o Bloco de Esquerda que o incentivo à fixação das pessoas nos centros históricos depende, não dos privados, mas de políticas públicas. De acordo. Mas há um equívoco de premissa. Em termos de economia de mercado, economia nacional e, sobretudo, economia local, é estúpido desperdiçar um espaço que um promotor privado pode rentabilizar com lucro para todos – comércio local, fiscalidade municipal, atratividade turística – para optar por habitação subsidiada. Lisboa está cheia de terrenos, mesmo na orla central (sobretudo na zona oriental, mas não só) onde as políticas públicas de habitação podem dar largas à sua “generosidade”.
Voltemos a Robles: pelo caminho, tem de despejar quatro pessoas e eliminar um pequeno negócio de restauração. Mas a sua aposta no alojamento local compensará o prejuízo: a cidade valorizou-se e gerou uma nova vitalidade, com a circulação de pessoas novas e diferentes, que trarão o valor acrescentado das suas experiências e do seu consumismo. A recuperação do edifício e a manutenção das próprias instalações do alojamento local – pequenos trabalhos de valorização ou permanente reparação, os serviços de limpeza necessários, os arranjos contínuos do espaço – criarão muito mais empregos do que os eliminados no processo. Ricardo Robles reconheceu, sem o saber, uma evidência: a reabilitação dos centros históricos, bem como a fixação de populações – mesmo que pela via da atração de outras, necessariamente mais endinheiradas e, portanto, mais amigas da economia local – não se faz por decreto nem aparece por milagre. Têm sido, sobretudo, os privados a fazê-lo, não pelos bonitos olhos dos centros históricos, mas porque esperam ganhar algum. É assim que funciona, de novo, e esta é a forma mais expedita, duradoura e sustentável de recuperar a cidade e de a tornar mais cosmopolita e mais atrativa.
Há cerca de 15 anos, quando visitei a cidade de Praga pela primeira vez, impressionei-me com a vitalidade e o cosmopolitismo da urbe. Grupos de jovens turistas, japoneses, russos, alemães, americanos polvilhavam todo o seu centro histórico. Trocavam-se experiências, contactava-se com ideias novas, abria-se a cabeça para novas realidades. Lembro-me de ter pensado: “Quem me dera que Lisboa fosse assim! Só ia fazer bem aos lisboetas.”
Mas fixemo-nos no mito da “explusão” dos moradores e na alegada gentrificação. Há aqui qualquer coisa que não bate certo. Andámos décadas a ouvir falar da desertificação da cidade. Antes do boom do turismo, Lisboa já tinha perdido, em vinte anos, 200 mil habitantes. O comércio tinha praticamente desaparecido da Baixa Pombalina. Na agregação de freguesias, encetada por António Costa, verificou-se que ela foi facilitada pelo facto de haver algumas dessas autarquias, por exemplo, na mesma Baixa Pombalina, onde habitavam 40 ou 50 pessoas, quase todas idosas e, portanto, digamo-lo com crueza, “em vias de extinção”. Ninguém queria lá morar, porque estava tudo velho, a cair e sem condições de habitabilidade. De repente, como se não houvesse memória, diaboliza-se o alojamento local porque, vejam lá, “expulsa os moradores dos centros históricos”. Mas quais moradores? Os que ainda lá havia, e que eram meia dúzia, ou os que agora querem voltar, só porque agora aqueles já são bons lugares para viver? E são bons porquê?… Digo-vos que é graças ao turismo e à “invasão” de turistas que esses sítios têm hoje gente, e que nunca a teriam de outra forma. E não só durante o dia (não sei se se lembram de como era a Baixa, à noite, antes da “gentrificação”…). Ora, lamento anunciar, mas os melhores sítios para viver custam dinheiro. E os preços dependem da procura. Se são caros é porque há muita gente interessada. Portanto, não há qualquer desertificação associada ao fenómeno. O que há é uma mudança da população ocupante (e, nalguns casos, o seu reforço) o que não é necessariamente mau.
Critica-se a “gentrificação”, porque ela significa substituir a identidade de um sítio por outra estranha e, talvez, hostil. Ótimo. Pelo que me lembro de como eram os locais de que estamos a falar (por exemplo, com prostiuição na então degradada e degradante Praça da Figueira, no coração da Baixa, ao lado do Rossio), que venha essa gentrificação, que só nos pode fazer bem. Mas que identidade procuramos defender? A Lisboa bisonha, deterioriada, decadente, deserta, provinciana, com tascas infectas, lojas decrépitas e mercearias feiosas (das quais, agora, por um sentimentalismo bacoco, saudosista e fascizante se chora a extinção)? Se o resultado da gentrificação for o de reforçar o cosmopolitismo que fez da capital do Império, nos séculos XVI e XVII, a mais vibrante e mais populosa da Europa – qualidades que perdemos no nosso isolamento e decadência -, venha essa gentrificação. O movimento turístico e o contacto com o outro só nos pode fazer bem, quanto mais não seja, para nos abrir a cabeça, tornar-nos menos provincianos e mais atentos ao mundo.
O turismo veio, não só dar-nos o pão de cada dia e acabar com o desemprego, como conferir-nos um upgrade civilizacional. É muito bom ouvir falar inglês, francês, alemão, chinês, espanhol, russo ou japonês pelas ruas do centro histórico. É muito bom ver como grupos de jovens turistas ocupam com gosto e não com lamentos as casas que estávamos a deixar cair porque ninguém lá queria morar. O turismo tornou-nos mais exigentes no atendimento no comércio e na restauração, insuflou-nos um pouco de urbanidade, puxou por nós e deu-nos de comer. O Alojamento Local gerou a constituição de muitos negócios, levados a cabo por pequenos empreendedores que poderiam, se assim não fosse, engrossar os contigentes da emigração, o funcionalismo público ou as taxas de desemprego. Empresas de limpeza – especializadas, porque é preciso fazer a manutenção entre cada estadia – as firmas de tratamento de piscinas, a construção civil, a jardinagem, o catering, a restauração e o pequeno comércio – sim, o pequeno comércio, que tinha desaparecido da Baixa de Lisboa e que está de volta. Diferente, talvez mais adaptado ao cliente – que muitas vezes é o turista – mas de volta.
Num meme recente, que aparecia no facebook, dizia-se que as pessoas de Lisboa tinham posto a bandeira nacional à janela, durante o mundial. O que se via era um aspeto da Baixa, com bandeiras paquistanesas, brasileiras, francesas, chinesas etc – mesmo que muitos dos países envolvidos não estivessem na competição, o que retirava força à graça. Tudo menos bandeiras portuguesas. Pois o mesmo meme, há 15 anos, não teria bandeiras, de todo. Talvez uma ou duas portuguesas, colocadas pelos poucos habitantes que lá resistiam. Procurando ser uma caricatura crítica, este meme era um elogio ao novo cosmopolitismo de Lisboa. Os seus bairros históricos estão menos degradados, menos bisonhos, mais seguros e a capital está menos isolada, menos decadente, menos estragada e está mais rica e mais universal. Nessas esquinas, estão, agora, lojas de souvenirs, mercearias com latas de conservas e vinhos nacionais, charcutarias, artesanato, sapatarias com o excelente calçado nacional ou “portuguese bakeries”. Sim, assim mesmo, em Inglês, bakery! So what? Estaremos tão inseguros da nossa cultura para que a consideremos ameaçada por utilizarmos uns estrangeirismos ou adotarmos algumas boas práticas, estilos ou ideias para as adaptar ao gosto de quem nos visita – e que é, frequentemente, muito melhor do que o nosso?…
A pugna do Bloco de Esquerda contra a suposta gentrificação, o alojamento local, os hostels ou estruturas deste género, para além das óbvias ressonâncias xenófobas, a ter sucesso, acabará com milhares de postos de trabalho, afundará os centros históricos no marasmo e na degradação de onde foram resgatados e não fixará população alguma, porque voltará a ser um inferno viver lá. É verdade que o turismo contribui para o preço proibitivo de viver no centro. Mas os centros das grandes cidades do mundo são sempre proibitivos. E o próprio mercado se há de encarregar de, em breve, corrigir a especulação do gato por lebre das rendas caras em tugúrios minúsculos ou em Chelas, nos Olivais ou noutros locais muito dignos mas menos nobres. A cabeça de Ricardo Robles só reconheceu isto – mesmo que o seu coração, por ideologia política, o tivesse, durante um tempo, negado.