Há défice ou há uma folga? Os salários da Função Pública devem ser aumentados ou não devem? O Governo está a investir na melhoria dos serviços públicos ou está a sacrificá-los ao cumprimento das metas? António Costa está com saudades do Bloco Central ou não está? A descentralização faz-se ouvindo a esquerda ou dispensando-a? Rui Rio está a combater o populismo ou a ceder-lhe? Os deputados das Ilhas receberam subsídios legítimos ou abusaram?
1 – O défice e a folga
A esquerda parlamentar, apoiante do Governo minoritário do PS, afirma que, ao não atingir o défice previsto no Orçamento de Estado para 2018, preferindo reduzir o número de 1,1% para os 0,7%, o Governo dispõe de uma folga orçamental que lhe permite reforçar o investimento nos serviços públicos que, segundo a perceção geral, se estão a degradar. E, aqui, fala-se, em especial, da Saúde – muito por conta do recente caso da ala de Pediatria Oncológica do Hospital de São João, no Porto. De facto, o Orçamento que PS, Bloco, PCP e Verdes aprovaram foi um – e o que Mário Centeno pretende executar, à sua revelia, é outro. António Costa explicou, e bem, que os números da previsão de outubro melhoraram, depois do fecho de contas do ano de 2017, e que a base de partida é substancialmente diferente, para melhor. Por outro lado, em boa verdade, nenhum dos Orçamentos anteriormente aprovados pela esquerda foi cumprido, depois, em sede de execução orçamental. E não se viu este protesto. Ora, acresce que o País não tem uma folga. O que tem é menos prejuízo – visto que se mantém em défice, embora menor. Por outras palavras menos simples, essa ideia foi deixada, de novo bem, pelo primeiro-ministro, no debate parlamentar quinzenal desta semana. Mas essa é, também, uma parte da verdade. Ou seja, os compromissos europeus permitiam um determinado “prejuízo” que o Governo vai reduzir. Não aplicar a margem de manobra em investimento público é uma opção política – que podia ser contrária, sem pôr em causa o cumprimento dos objetivos. Faltou a Costa assumir essa parte.
O Bloco de Esquerda argumenta que essa suposta “folga” deve ser aplicada de outra maneira. A isso, o Governo responde que os compromissos com o Bloco estão a ser cumpridos. Como quem diz que essa opção, ou seja, o que fazer com a margem de manobra, não faz parte deles. Com efeito, essa opção pertence a quem governa. Por isso é que o PS está no Governo e o Bloco não está. Costa teria sido mais claro se dissesse isto preto no branco, mas o Bloco percebeu – Mariana Mortágua afastou a ideia de crise política.
2 – Os serviços públicos
Fala-se muito em falta de espírito reformista, o que quer que isso seja. Reformas, normalmente, são um eufemismo para “lixar o Zé”. Mas a gestão dos serviços públicos, essa sim, é uma das maiores deceções que podemos ter com este Governo. Casos como os da degradação na oferta de transportes, o que se passa na Saúde e em muitas escolas do País, a deterioração das infraestruturas, a falência da Proteção Civil, etc., são a negação do que um Governo de esquerda supostamente devia defender: mais do que proteger o funcionalismo, pugnar por melhores serviços públicos e pela sua valorização. Quem viaja em sardinha em lata depois de tempos infindos de espera no Metro de Lisboa perguntará: “Foi para isto que fizeram a reversão da privatização?”. Por outro lado, exemplos como o da Ponte 25 de Abril ou o do Hospital de São João sugerem que só pressionado pela denúncia na imprensa e pelo espetáculo mediático e alarme social em torno dessa denúncia é que o Governo age e Mário Centeno abre os cordões à bolsa. Portanto, a partir de agora, quem estiver à espera, sem resposta, para acudir a uma situação urgente, é só levar o caso aos jornais rádios ou televisões. E isto também é válido para os ministros colegas de Centeno que estejam fartos de bater com o nariz na porta… Está encontrada a receita. Por outro lado, ainda no caso do São João, é verdade que a situação já vem do Governo anterior. Mas este está lá há dois anos e meio. E se foi tão lesto a corrigir situações noutras matérias – as reversões, por exemplo… – o que o impediu de atuar nestas?… Fala-se, agora, de um prazo de dois anos e meio para a construção da infraestrutura no São João. Recordo que é apenas uma ala pediátrica. Ora, dois anos e meio, se começássemos já a trabalhar com vontade e competência, dava para construir um hospital inteiro! Eu, se fosse ministro da Saúde, pintava a cara de preto se não tivesse a ala novinha em folha, a tempo de a apresentar aos eleitores, antes das legislativas do próximo ano. António Costa iria ficar contente…
3 – As saudades de António Costa
Provocando sorrisos gerais no Parlamento, a deputada de Os Verdes, Heloísa Apolónia, confrontou António Costa com os dois acordos assinados esta semana com Rui Rio – um referente aos dinheiros comunitários a receber por Portugal e o outro relacionado com a descentralização – perguntando-lhe se lhe tinha “batido uma saudade” de entendimentos com o PSD. A ironia de Heloísa é mais certeira do que pensa: é que Costa está mesmo com saudades, porque ele e Rui Rio tiveram sempre posições convergentes relativamente à descentralização e celebraram outros entendimentos ou, pelo menos, conciliaram posições, quando um era presidente da Câmara de Lisboa e o outro edil no Porto. Independentemente do sentimentalismo, a verdade é que estas matérias são suscetíveis de atravessar várias legislaturas e um entendimento entre os dois únicos partidos com possibilidade de liderarem governos é sempre bem vindo.
4 – A descentralização e o PCP
Um dos pontos principais deste acordo de descentralização – que conhecemos mal – parece ser o da transferência gradual de competências e das correspondentes verbas (funcionários também?…) para as autarquias. Ora, o Governo e o PS devem ter em conta que, pelo menos o PCP é, ainda, um grande partido autárquico. Podem os comunistas ser postos à margem deste acordo? O que terão António Costa e Rui Rio a dizer-lhes?
5 – Rui Rio e o populismo
Imaginamos Rui Rio frente a um espelho que lá terá em casa a perguntar-se: “Espelho mágico, espelho meu, haverá algum político menos populista do que eu?”. De facto, o líder do PSD fez do combate ao populismo uma das suas bandeiras na candidatura à liderança do seu partido e a prática, na oposição, não tem cedido à demagogia. Até que, eis se não quando, tem uma tirada deste calibre: “Se há dinhero para meter nos bancos, também tem de haver para aumentar os funcionários. Um aumento de acordo com a inflação custa apenas 300 milhões” o que, presume-se, não é nada, comparado com os 8 mil milhões que já enterrámos no sistema financeiro. Rui Rio não se esquece, mas também, não diz, que o dinheiro aplicado, mal ou bem, nesse sistema financeiro, embora tenha de ser reposto pelo contribuinte ao longo de muitos e desgraçados anos, é uma medida finita. Enquanto que os 300 milhões anuais do aumento dos salários são para sempre, o que dará, independentemente do agravamento, por efeito de outros aumentos no futuro, uma conta de muitos milhares de milhões até ao fim dos tempos. Cavaco Silva, o criador não assumido – foi um seu governo que inventou a progressão automática nas carreiras… – chamou à criatura “O Monstro”. Pois é.
6 – Os subsídios dos deputados
O humorista e colunista da VISÃO Ricardo Araújo Pereira teve, no sketch sobre o aborto, criado a propósito do primeiro referendo, a sua mais demolidora intervenção política de sempre. Foi isto quando parodiou Marcelo Rebelo de Sousa com a célebre imitação do “é proibido… mas pode-se fazer”. Um destes dias, ainda retomará a ideia, invertendo-a, a propósito da duplicação de subsídios aos deputados oriundos da Madeira e dos Açores, para as suas viagens a casa: “É permitido, mas não se pode fazer”. E penso que, com isto, está tudo dito.