O jornalista da VISÃO, Miguel Carvalho, acaba de publicar um livro (Quando Portugal Ardeu, Oficina do Livro) a todos os títulos apaixonante. Na sinopse, pode perceber-se que o autor responde a perguntas que estavam sem resposta há mais de quatro décadas:
Quem foram as primeiras vítimas mortais da democracia? Por que razão foram assassinados Padre Max, Rosinda Teixeira e Joaquim Ferreira Torres? Quem protegia e que segredos escondia a rede bombista de extrema-direita? Como é que a Igreja mobilizou e abençoou a luta contra o comunismo? O que sabia a PJ sobre o terrorismo político e tudo o que nunca chegou a julgamento?
Miguel Carvalho dá-nos, assim, uma outra face do PREC, aquela que os vencedores nunca relatam, a da violência anti-comunista que varreu o País, a partir de uma concentração de agricultores, em Rio Maior, no verão quente de 1975. Uma semana depois, em Alcobaça, uma pedrada acertava poucos centímetros acima da cabeça de Álvaro Cunhal, de visita à então vila, e que assomara à janela da sede local do PCP, rapidamente assaltada, com o líder comunista a ser evacuado pelas traseiras.
Desses tempos conturbados, porém, nasceu o trauma que impediu, até 2015, que o PS recorresse à esquerda para encontrar soluções governativas viáveis. Mais do que as conceções diferentes de sociedade, foi a luta de morte entre o PCP, a extrema esquerda e todos os outros (direita, saudosistas do Estado Novo, democratas, e socialistas) que manteve toda esta gente de costas voltadas. Independentemente da manipulação das populações pela Igreja ou pelas organizações da reação – ELP e MDLP -, como foi possível que o homem comum aderisse, como aderiu, aos assaltos às sedes do PCP? Por que razão cantavam os próprios filiados no PS, numa adulteração da icónica “Gaivota” de Ermelinda Duarte, “um comunista, voava, voava, de uma janela de um 4.º andar”…?
Sem dúvida que o PS, tal como os militares moderados, tinha uma parceria, pelo menos tácita, e de troca de informações, com as organizações que orquestravam essa violência. Mário Soares era muito pragmático, conhecia a História da revolução bolchevique de 1917/18, sabia o que lhe estava destinado e achou que não sobrevivia – literalmente! – se não jogasse sujo. Para isso, estava disposto a aliar-se ao próprio diabo – como a CIA… O líder do PS poderia citar Churchill, embora em sentido inverso, quando este se justificou pela aliança com Estaline para derrotar Hitler: “Se tivesse que me aliar ao próprio diabo, fá-lo-ia”.
Miguel Carvalho, que é do Porto, era criança e foi testemunha ocular, porque às crianças nada esquece. Viu gente do PCP a ser perseguida, que escapava de Braga, de Guimarães, de Famalicão… Guerra civil? De uma certa forma encapotada, ela estava no terreno, mas nunca tinha sido descrita deste lado da barricada, como agora, em “Quando Portugal Ardeu”.
Por que razão homens tão de esquerda como Mário Soares ou o coronel Melo Antunes (o estratega político do 25 de abril) tiveram aquela complacência para com essas ações? É preciso viajar no tempo. O PCP e a extrema esquerda (na maior parte, hoje, no Bloco) não podem ser vistos à luz dos olhos atuais nem da evolução que, entretanto, empreenderam. O PCP era mesmo uma ameaça real, porque estava a seguir, a par e passo, todos os momentos da revolução bolchevique, contra os mencheviques. E os seus métodos de apropriação do aparelho de Estado e, sobretudo, de “vigilância revolucionária”, indicavam um pendor “tecnicamente” totalitário. Mário Soares, como disse, nessa altura, o secretário de Estado americano Henry Kissinger, arriscava-se a ser o Kerensky português, numa alusão ao líder social-democrata russo trucidado pelos bolcheviques. O PCP tinha-se tornado um rolo compressor que esmagava tudo à sua passagem. O próprio Álvaro Cunhal ameaçou diretamente o líder socialista, numa célebre reunião, no auge do poder revolucionário: “Ou o PS fica do nosso lado ou será implacavelmente esmagado”. Era uma luta de morte e, do ponto de vista dos que se opunham ao avanço da vanguarda revolucionária, o trabalho sujo dos assaltos ao PCP parecia fundamental, para desmoralizar o inimigo.
No Norte do País, este terrorismo de direita seria manipulado pelo ELP e pelo MDLP, ou por setores da Igreja, como prova, com testemunhos e documentos, Miguel Carvalho, no seu importante livro. Mas não teria sido possível reunir aquelas turbas se os propósitos da extrema direita não tivessem encontrado terreno fértil para germinar. Há quem diga que, se as eleições tivessem sido no dia 26 de abril de 1974, o PCP ganhava, mesmo em Rio Maior e, se calhar, em Braga… Mas, no verão de 1975, o País profundo, fora da cintura industrial de Lisboa ou dos campos proletários do Alentejo, estava extremamente assustado e disposto a tudo, com ELP ou sem ELP… É por isso que a História não deve ser avaliada pelos parâmetros das épocas em que se estuda, mas pelo seu próprio tempo histórico. Algo que Miguel Carvalho, embora denuncie, sem contemplações, as ações terroristas contra o PCP e a extrema esquerda, também consegue brilhantemente fazer, através das palavras dos protagonistas com quem falou e nele confiaram.
É por tudo isso estar aparentemente esquecido que, nomeadamente, as gerações mais novas, não compreendem os 40 anos de separação à esquerda e muitos simpatizantes, mais jovens, do PS, não concebam as dúvidas de tantos dos seus dirigentes históricos, face à reviravolta empreendida por António Costa.
Esta animosidade histórica, que tanta celeuma deu no interior do PS quando se formou a geringonça, explica quase tudo. As pessoas estão vivas, muitas eram ainda crianças ou adolescentes mas viveram tudo por dentro das suas famílias. Não vamos mais longe: mal comparado, ainda hoje, a Espanha, que teve uma guerra civil, vive na divisão entre republicanos e falangistas, embora não se reconheçam como tal. A sua Igreja Católica é muito mais ultramontana do que a portuguesa e o anticlericasrismo muito mais militante. As leis fraturantes agressivamente empreendidas pelo governo socialista de José Luis Zapatero, que até originaram reações incómodas durante a visita de um Papa (Bento XVI) a Espanha, e que Sócrates quis imitar em Portugal, devem ser, também, vistas a esta luz.
Imagine-se o caso de Sérgio Sousa Pinto, Francisco Assis ou Vera Jardim, aliás todos de sensibilidades diferentes no PS mas todos, à partida, alérgicos a entendimentos com o PCP. As memórias dessa luta de morte entre socialistas e comunistas perduram e têm muita força. E as reações foram transversais, no partido, independentemente de se pertencer a uma ala mais à esquerda ou mais à direita. Manuel Alegre, por exemplo, foi uma espécie de chefe da tropa de choque de Soares contra o PCP, no PREC. Ele conhecia bem os comunistas, dos tempos do exílio, em Argel…
Porque é que a a geringonça é um momento histórico verdadeiramente fundador? Ela só foi possível porque António Costa, filho de um comunista e de uma social-democrata do PS, teve afetos nos dois lados e ficou imune à acrimónia, que lhe passou completamente ao lado. O que, até do ponto de vista da psicanálise, é decisivo. Fora ele, aliás, quem comandara a campanha da coligação Por Lisboa, em 1989, que elegeu Jorge Sampaio, à frente de uma aliança, então igualmente histórica, com o PCP, para a Câmara da capital. Em 2015, Costa soube fazer – e impor! – uma ponte, sem ressentimentos. Mas ele é um caso raro no PS que, por um conjunto de circunstâncias irrepetíveis – ter chegado à liderança, não ter ganho as eleições nem, muito menos, obtido maioria absoluta, e ser líder num período histórico em que o estilo e os métodos “bolchevistas” se encontravam no radicalismo da direita… – apareceu, do ponto de vista da conquista do poder, na hora certa.
E isto, tal como o conteúdo do excelente livro de Miguel Carvalho, se calhar, nunca tinha sido dito.