O politicamente correto, a esperteza saloia e a era do pós-verdade, mesmo sem uma face suficientemente assumida ou representada partidariamente, são conceitos e práticas bem presentes na vida política portuguesa. Por enquanto, as suas formas de expressão são inócuas, quase benignas, pequeninas, à portuguesa. Mas elas existem. Vamos a três ou quatro pequenos exemplos?
Exemplo 1: Os reformados, aposentados e pensionistas representam uma fatia do eleitorado que nenhum partido pode dar-se ao luxo de negligenciar. Grande parte desta clientela terá falhado à coligação PàF, nas últimas legislativas, roubando-lhe uma maioria que, não fora a “perseguição” de quatro anos de austeridade aos pensionistas, o PSD/CDS poderia ter perfeitamente alcançado. A política de reposições deste Governo não compra, apenas, paz social: ela procura garantir votos preciosos. O aumento da gasolina, como qualquer imposto indireto, não incide sobre qualquer setor da população em particular, e apenas alimenta uma hostilidade difusa. Mas os cortes a reformados já são uma questão pessoal. António Costa sabe isso. Certo.
Mas o ridículo pode ser atingido. Uma lei recente garante a prioridade aos idosos, em locais de atendimento público. E responsabiliza os estabelecimentos (e não os cidadãos na fila) pelo seu cumprimento, atirando para cima de terceiros o papel de policiamento que só compete ao Estado. Mas o que mais faz pensar é a lógica da coisa. É que, para pessoas incapacitadas, o atendimento prioritário já existia, sem necessidade de novas regras. O que está aqui em causa é que os mais velhos, presumivelmente reformados, e que têm tempo para esperar, passam à frente. E as pessoas que andam a trabalhar e que, portanto, precisam de se despachar depressa, ficam à espera. Ora aqui está uma medida amiga da competitividade…
Exemplo 2: O Governo gaba-se de repor poder de compra e de devolver cortes “injustos” aos pensionistas. Mas, numa pirueta orçamental, preparava-se para deixar de pagar metade do 13.º mês em duodécimos, empurrando para o final do ano o pagamento completo do respetivo subsídio. Com isto, embora seja verdade que os pensionistas receberiam globalmente mais dinheiro, o que aconteceria, na prática, é que teriam um corte no recibo da pensão, ao fim de cada mês, até novembro. O efeito da medida da reposição esvaziava-se. Logo, o Governo pensou melhor e já diz que está tudo em aberto. Mas percebe-se a tal pirueta orçamental do impulso inicial: empurrando essa despesa para o final do ano, ajudava-se à execução orçamental nos três primeiros trimestres, que serão cruciais para o desempenho financeiro do País. Ao mesmo tempo, e confiando na lei da vida, esperava-se, tranquilamente, que muitos dos pensionistas falecessem até lá…
Exemplo 3: o Bloco de Esquerda fez aprovar uma lei que permite a opção pela identidfade de género a partir dos 16 anos. Quer dizer. um adolescente, numa idade propensa a precipitações ou a grandes decisões dramáticas, pode ter o impulso de mudar de sexo, como se estivesse a pôr argolas no nariz que nunca usará aos 30, mas ainda não tem discernimento para poder votar… O argumento do Bloco é notável: pretende-se “despatologizar” a opção pela mudança de sexo. Ora, para além de a situação que se procura prever ser raríssima – e portanto, haveria temas mais prementes com que o Bloco poderia entreter-se… – a mania da despatologização de todo e qualquer aspeto da vida sexual é, como qualquer aluno de 1.º ano de Psicologia confirmará, um total disparate. O mesmo aluno sabe que, em princípio, mais de 90% dos jovens de 16 anos que querem mudar a “identidade de género”, do que precisam, em primeiro lugar, é de acompanhamento clínico, para que, mais tarde, de forma madura, possam tomar a sua decisão, com segurança. Mas não. o que interessa é parecer “fraturante”.
Exemplo 4: Para falar da pós verdade, uma das palavras do ano, e que procura explicar, entre outras coisas, a vitória de Trump. No fundo, o pós verdade tem um nome que pode parecer antiquado: a palavra mentira. O que explica o pós verdade (ou não explica de todo) é que políticos possam ganhar eleições mentindo em “cumplicidade com o eleitorado”, que sabe perfeitamente que eles mentem, que negam a evidência ou que desafiam a lógica das coisas, como se estivessem a dizer que a Terra é plana.
Ora, em Portugal, o caso Sócrates tem muito a ver com isto. Os movimentos organizados de apoio ao antigo primeiro-ministro, a presença de elites esclarecidas nas suas conferências ou lançamentos de livros e o seu sucesso mediático. Sim, no mundo do pós verdade, Sócrates não está politicamente acabado. Está só a retomar o fôlego.