Em entrevista à Antena 1, Catarina Martins justificou o voto favorável do Bloco de Esquerda à proposta de lei do PSD para obrigar os administradores da Caixa Geral de Depósitos a entregarem ao Tribunal Constitucional (TC) as suas declarações de rendimentos e património. Como explicou a coordenadora do Bloco, não havia nada de novo nesta lei, porque eles já estavam obrigados por legislação anterior. E o conteúdo da proposta era o genericamente defendido por todos os partidos representados na Assembleia e, até, pelo que ficou implícito de declarações do próprio primeiro-ministro, António Costa. Então, por que razão não votou, nomeadamente, o PS, ao lado do Bloco e do PSD?
Já vamos ver. Francisco Louçã declarou, posteriormente, que António Costa terá respirado de alívio, pela precipitação da demissão do presidente nomeado para a Caixa, António Domingues. Que, por sua vez, terá sido empurrado pela “gota de água” da lei agora aprovada. Dir-se-ia, pelas entrelinhas, e pelo que é possível detetar na conclusão de Louçã, que, afinal, foi tudo combinado. No fundo, pela má consciência de garantias alegadamente dadas por Mário Centeno a Domingues, que o dispensariam de entregar a declaração, o PS não se sentiria confortável em carregar mais na ferida, aprovando a lei. O Bloco fez esse trabalho. Mas, se a lei não traz nada de novo, relativamente ao que já estaria anteriormente legislado, por que razão ficou o ex-presidente da CGD tão agastado, ao ponto de se demitir?
A chave parece estar no comunicado publicado, há semanas, por Marcelo Rebelo de Sousa, no site da Presidência da República. Nesse texto, Marcelo elabora uma espécie de mini-parecer jurídico, defendendo a entrega das declarações – e, ao mesmo tempo, sugerindo que, caso o TC dispensasse essa entrega, o Parlamento poderia legislar para a forçar. Numa jogada de antecipação, foi precisamente a lei sugerida por Marcelo que o PSD apresentou, antecipando os timings do Tribunal – e dispensando-o, mesmo, de se pronunciar. Na verdade, os juízes ainda não tinham decidido se os argumentos apresentados por Domingues e por parte da sua equipa para a não entrega eram aceitáveis ou não. E até se discutia se, ocorrendo a entrega das declarações, elas deveriam ou não ser tornadas públicas.
Foi este fator que precipitou a decisão de António Domingues. Ele tem um argumento: é que, quando aceitou o cargo, já existia a lei de 1983, que obriga à entrega e de que ele não pode invocar desconheciemnto – mas esta nova lei ainda não existia. E ela foi criada ad hominem, para o visar. Torna obrigatória e definitiva uma norma que o TC ainda podia dispensar. Foi como se as regras do jogo tivessem mudado. Isto tem mais importância do que parece: é que, com base nessa espécie de quebra de contrato, por parte do Estado, ele pode ter argumentos jurídicos para reclamar uma indemnização. Trunfo que, neste caso, fica a dever ao Bloco de Esquerda…
Desta história, podem tirar-se várias ilações políticas: em primeiro lugar, a gestão de todo o dossiê da Caixa, que começou numa gigantesca distribuição de tachos que a Europa chumbou, em agosto, obrigando à redução do conselho de administração, e acabou na atribuição de salários milionários a gestores cuja missão será a de despedir pessoal, foi completamente desastrosa. Dispensar os gestores de apresentar as declarações, seja por desconhecimento da lei, seja por um esquemático de chico esperto a ver se passa, foi outro desastre que, só por si, justificaria a demissão, no mínimo, do ministro das Finanças. Mário Centeno só escapa, porque a sua principal missão, fazer a quadratura do círculo da reposição de rendimentos cumprindo, ao mesmo tempo, as metas e apresentando um orçamento que, para a Comissão Europeia, parece, até ver, irrepreensível, foi desempenhada com distinção. E isso dá-lhe um respaldo político que fará do Caixagate um faits divers.
Em segundo lugar, a oposição soube cavalgar, com competência, o escândalo. E o PSD, ao seguir a sugestão legislativa de Marcelo, revelou um sinal de vitalidade que desmente as análises pessimistas sobre o desempenho do seu líder. Essa iniciativa, aliás, foi a primeira que (pelo menos no que podemos ver às claras…) conseguiu dividir a esquerda parlamentar, numa votação. Tendo em conta a solidez que a geringonça tem revelado, não é pequena coisa. Mas isto não disfarça um aspeto importante: se não fosse a Caixa, o PSD não teria um único argumento, ao menos, mediático, para atacar o Governo na discussão do Orçamento de Estado…
Em terceiro lugar, o caso confirma a enorme capacidade de influência que Marcelo Rebelo de Sousa está a ter nos seus primeiros meses de mandato. Falou, escreveu, sugeriu e obteve um resultado.
Em quarto e último lugar, o caso faz do comentador Marques Mendes uma espécie de opositor informal a morder os calcanhares de António Costa. Foi ele que, na SIC, trouxe para a luz do dia o caso das declarações dos administradores da Caixa, no momento em que estavam todos distraídos e António Domingues iria passar sem sobressaltos. O antigo líder do PSD falhou nas suas previsões finais – dizendo que Domingues entregaria a declaração e se manteria no cargo – mas, pelo menos para já, funcionou como a “pitonisa” de passos Coelho.