Cada vez é mais evidente que as minhas bugigangas tecnológicas estão convencidas de que eu sou filho delas. Há uns dias foi a aplicação da Netflix que, depois de eu ter assistido de seguida a vários episódios da mesma série, me perguntou, com aquela impertinência que a gente só tolera a um progenitor: “Ainda está a ver?” Tive o mesmo pequeno calafrio que sentia na infância quando era apanhado a ver televisão fora de horas, e comecei a verificar mentalmente se tinha feito todos os trabalhos de casa, até me lembrar que não tenho trabalhos de casa para fazer há uns 25 anos. Havia algum sarcasmo naquele “Ainda está a ver?”, e foi eficaz. Comecei a pensar na justiça da admoestação: de facto, talvez eu estivesse a ver a série há demasiado tempo, talvez fosse já muito tarde, e portanto optei por ir para a cama antes que a conversa azedasse e a Netflix começasse a dizer frases iniciadas pela expressão “Enquanto viveres debaixo do meu tecto”.
No dia seguinte achei que talvez estivesse a exagerar quanto ao paternalismo das tecnologias, mas depois peguei no telefone e ele disse-me que, nessa semana, eu tinha passado uma média de 45 minutos diários a olhar para ele, o que representava um aumento de 2% relativamente à semana anterior. O caso era, por isso, ainda pior do que eu pensava: os meus pais também controlavam o tempo que eu gastava com zingarelhos tecnológicos, mas não dispunham de dados tão rigorosos, nem faziam comparações com períodos homólogos.
Tentei fugir da tecnologia indo ao treino de boxe, mas assim que entrei no carro o telefone comunicou-me: “12 minutos até à Avenida João Crisóstomo. Vá pela auto-estrada de Cascais, não há trânsito.” Tal como a minha mãe, o telefone tinha um sexto sentido que lhe permitia saber para onde eu ia; e, tal como o meu pai, sabia exactamente qual era o caminho mais prático para lá chegar – e fazia questão de mo dizer. Envergonhei-me da vontade adolescente que tive de me rebelar contra o telefone. Era muito claro que ele exercia sobre mim um controlo paternal protector, terno mas asfixiante, útil por um lado mas humilhante por outro.
Ocorreu-me então que o moderno complexo de Édipo talvez consista num conjunto de inclinações afectuosas e hostis em relação à tecnologia, e fui acometido por um desejo muito forte de partir o iPhone e ir para casa tentar casar com a Bimby.
(Crónica publicada na VISÃO 1364 de 25 de abril)