‘Afinal não sou só eu’. Este pensamento apaziguou-me. Estava num oficina de automóveis a aguardar a minha vez. Tal como eu, outras pessoas iam adiantando as tarefas do dia, enquanto aguardavam na fila, com os telemóveis a tomarem o lugar de escritórios móveis. A certa altura, um dos clientes disse ao responsável da oficina: “Envia-me depois o inventário por mail?” Ao que o homem respondeu: “Esqueça lá isso, é melhor passar cá porque eu não uso o mail, perco muito tempo com isso.”
E assim é. Perdemos mais tempo com isso mas poucos temos coragem de assumir ou fazer alguma coisa acerca disso. Por outro lado, a questão é incontornável: a digitalização da economia está a empurrar-nos, a todos, para uma nova escravatura, maior parte das vezes sedentária, ora a descortinar como se preenche o novo formulário das Finanças ou o e-fatura, ora a braços com os tutoriais user friendly para tudo e mais alguma coisa. O tal trabalho oculto, ou aquela atividade frenética que não só nos distancia dos outros como nos descentra de nós, especialmente se for realizado numa base regular, acabando por converter-se num automatismo – ou conveniência, entenderão alguns – paralizante a médio prazo.
Porque é que isto pode ser problemático?
1 – Quanto mais depressa, mais devagar
Exatamente. Falta o vagar. O espaço livre no disco para o que de facto importa. Ou para o novo. As rotinas acumulam-se, os mails na caixa de correio multiplicam-se de forma insustentavel para que se possa dar conta do recado em tempo útil, e no final do dia fica-se com aquela sensação de insuficiencia, para não dizer de impotência, como se tivessemos de fazer um upgrade do nosso próprio sistema de processamento. Pormenor: esquecendo que somos orgânicos, por muito digitais que nos consideremos
2 – Organizar / gerir é, também, acumular
Ninguém gosta de ser visto como um acumulador. Se é certo que hoje não andamos com muita tralha atrás, de papelada a gadgets, concentrando tudo nos ecossistemas digitais e no uso de um ou dois equipamentos, o facto é que ao nivel do software pessoal, a tendência é para acumular: passwords de segurança, informações, atualizações de procedimentos, gestão de compromissos, planeamento de espaços na agenda para estar, quantas vezes, com aqueles de quem mais gostamos, numa gincana que não tem fim à vista e deixa a cabeça sobreaquecida e o corpo dissociado dela, ora com peso a mais ou a menos, ora com batidas dessincronizadas e hiperventilações que não foram programadas
3 – Para pior já basta assim
Esta parece ser a mais ‘grave’ consequência de tanto zelo para ganhar tempo, agilizar processos e controlar o destino, expressão que tantas vezes se ouve, aqui e ali. Gera-se aquele efeito a que os piscólogos sociais chamam Sunk Cost Fallacy, ou seja, quanto mais tempo e energia se dedica a alguma coisa, mais difícil será abandoná-la, mesmo quando se revela manifestamente ineficaz e até geradora de danos suficientes para que se renuncie a continuar por aquela via. “Depois de tudo o que já investi nisto… não vou agora largar, nem pensar!”. Um desabafo comum.
O que fazer?
Ninguém disse que viver era simples. Ou que todos os processos evoluem de forma contínua e estável. Ou que a adaptação, per si, resolve tudo. Ninguém disse que havia riscos e que um deles é viver perigosamente. mesmo que se tenha a ilusão de ser confortavelmente. Partilho aqui algumas considerações sobre o assunto.
1 – Conforto ou confronto?
Pois é. Há zonas de conforto que podem ser verdadeiramente desconfortáveis e, ainda assim, serem vistas como preferiveis a um desconhecido amanhã que pode nunca cantar. “E se largo isto e faço aquilo, que garantias tenho?” ou “E quem me diz que a opção X é mais entusiasmante para o meu filho, em vez de um salto no escuro, ao passo que a opção Y, pelo menos para já, parece ser mais segura?” ou, ainda, “Aonde é que isso te leva?”, pergunta frequente em discussões de casal em transição de vida e nas fases de prospeção de alternativas que lhe vem associada. Sair da zona de conforto não é para zombies. Confrontar-se implica risco, esforço e persistência, algo próprio de sprinters e de maratonistas.
2 – Simplifique: vá pelos seus meios
Mudar rotinas. Arriscar em doses homeopáticas. Transgredir nem que seja na forma de chegar ao trabalho e mudar o trajeto, a estação de rádio ou ir simplesmente em silêncio. Melhor ainda: experimentar andar a pé sem ser “para emagrecer”, para “tonificar” ou “porque tem de ser”. Pode ser aderir a grupos de caminhadas ou corridas, mas não implica um espírito desportivo. A fundadora de um método de dessensibilização de traumas, Francine Saphiro, teve o seu momento de Eureka quando estava a caminhar num parque. Outras tantas pessoas famosas atribuem momentos de criatividade e descoberta a situações em que estavam com a mente liberta e sem fazer nada ou, melhor ainda, quando estavam em andamento, numa caminhada, num passeio ou numa corrida. “A apanhar ar”.
3 – Mobilidade e qualidade (de vida)
Nunca fomos tão rápidos a comunicar na modalidade de banda larga. O problema do digital coloca-se ao nível da espessura, da ressonância que têm, em cada um de nós, os terabytes que nos atravessam ao longo do tempo, dos dias. Talvez passem por nós a uma velocidade tão rápida que se torna inapreensível. Ou pouco relevante. Ou, ainda, sentida como desperdício acumulado. Como a caixa de mails e outras tarefas que ocupam a mente, sempre no futuro, mas que nunca chegam a ganhar materailidade efetiva.
Caminhar, andar, marcar o proprio ritmo, é uma forma de meditar. É, ainda, uma forma de exercitar o corpo e de libertar endorfinas e serotonina e dopamina, esse combustivel que anima o cerebro e energiza o corpo e os sentidos (recarrega-os). Dormir sobre um assunto que é preciso resolver, ou caminhar e correr – literalmente, com cabeça, tronco e membros – com ele, infunde uma nova dimensão ao processo de pensar e de fazer. É um ato de sincronização e de contemplação, onde o caos tem lugar. Onde a desordem mental é aceite e se regula a si mesma, sem a incómoda e “segura” sensação de estar tudo controlado.
As consultas de psicoterapia e aconselhamento que foram uma moda de nicho, nos idos anos 90, nos Estados Unidos, e conhecidas por Walking Therapy, parecem ser o ingrediente que faltava para restaurar os sistemas individuais e coletivos na sociedade do conhecimento. Porque nada pode ser melhor para a sanidade e o bem-estar do que sentir os pés no chão enquanto se navega com a cabeça, conjugando os verbos entre o passado e o futuro. O fiel da balança está no aqui e no agora. No corpo que nos habita. Na sua mobilidade. Na sua capacidade para devolver o equilíbrio que tanto se deseja, para saber quando arriscar e dar um passo em frente, parar, ou dar um passo atrás.