Ao contrário do que por vezes se diz e escreve, António Costa e José Sócrates nunca foram amigos do peito – pelo contrário, há muito que são adversários geracionais. Em 1991, quando António Guterres rompeu com Jorge Sampaio na sequência de um resultado catastrófico nas eleições legislativas, Costa estava fervorosamente ao lado de Sampaio enquanto Sócrates ajudava Guterres a roubar-lhe a liderança do partido, num processo politicamente sangrento que partiu o PS ao meio.
Nessa altura, os ânimos extremaram-se entre as partes e a poeira só começou a baixar quando Guterres, sob o alto patrocínio de Jorge Coelho, chamou alguns sampaístas para o seu Governo. Entre eles contava-se António Costa, que rapidamente se tornou uma peça importante num xadrez governamental em que José Sócrates se esforçava todos os dias para justificar o epíteto de “menino de ouro”. Já então os dois queriam ser líderes do PS. Só não sabiam quando a oportunidade espreitaria – o mesmo acontece hoje, por exemplo, com Pedro Nuno Santos e Ana Catarina Mendes.
Entretanto, Guterres afogou-se no pântano, mas Costa e Sócrates sobreviveram para continuarem as suas histórias. Sócrates chegou primeiro ao topo e, à boa maneira Churchilliana, chamou-o para o Governo – tê-lo a seu lado era a garantia de que este não ficaria de fora a desgastar a governação. Ao fazer de Costa o seu número dois informal, criou-se a ilusão de que uma amizade os ligava. Nada mais falso, como o demonstra o facto de o agora Primeiro-Ministro ter feito da eliminação de Sócrates e do socratismo uma prioridade absoluta da sua liderança, montando para tal uma estratégia laboriosamente concretizada em várias fases.
A primeira: ignorar José Sócrates. Aconteceu logo no início do seu mandato e tem como símbolo maior o congresso da sua eleição, que coincidiu no tempo com a detenção de Sócrates quando chegava de Paris. Costa deu ordem de silêncio sobre o assunto e os camaradas, com uma ou outra excepção, cumpriram com diligência.
A segunda: isolar o ex-Primeiro-Ministro. António Costa fê-lo quando, na sequência de uma visita a Sócrates na cadeia de Évora que decorreu de forma tumultuosa, afirmou friamente aos jornalistas que o esperavam à porta que o seu camarada ia lutar por aquilo que considerava “a sua verdade” – a “sua” verdade, não “a” verdade. Estava assim consumada a separação entre o PS e Sócrates. Uma coisa era uma coisa e outra coisa era outra coisa. O mesmo é dizer: “À justiça o que é da justiça; à política o que é da política.”
A terceira: silenciar o “socratismo”. Já no Governo, Costa fez com Sócrates o que este fez consigo: chamou os seus potenciais inimigos para junto de si. A Augusto Santos Silva e Vieira da Silva, rostos maiores da governação socrática e vozes com peso próprio na opinião pública, foram atribuídas pastas nucleares no Executivo, retirando-lhes margem para criticar o afastamento do PS e do Governo face ao ex-líder. Ao mesmo tempo, outros nomes importantes foram alvo de atenção: Pedro Silva Pereira, que já estava em Bruxelas, mantém-se calado em nome da hipótese da renovação do seu mandato europeu (as eleições são já em Janeiro de 2019 e é Costa quem decidirá a lista de candidatos), e João Galamba, um indefectível socrático, foi nomeado porta-voz do partido (cargo que acaba de perder no congresso que hoje terminou).
De fora ficaram apenas os verdadeiros amigos de Sócrates. Destes, destaco Paulo Campos, que entre juntar-se de forma oportunista ao novo PS silenciado ou ser fiel a um amigo, escolheu a segunda opção, sujeitando-se a óbvios danos reputacionais. Paulo Campos nunca foi arguido em nenhum processo e, no entanto, é frequentemente apresentado como uma extensão de José Sócrates, o que é obviamente injusto para si, dada a natureza e o alcance dos alegados crimes de que o seu amigo está acusado, num processo em que Paulo Campos nunca constou sequer do rol de suspeitos. Alguém com bom senso acredita que se o Ministério Público tivesse algo de concreto contra si não o teria constituído arguido e, depois disso, acusado na Operação Marquês?
A quarta (e última) fase da estratégia: varrer o ex-PM do partido. Aconteceu recentemente, com a manifestação pública, por parte de ilustres socialistas, do sentimento de “vergonha” que lhes provoca José Sócrates. O guião, naturalmente criado por António Costa, teve o desfecho previsível: a saída do ex-“menino de ouro” e a consequente criação de condições políticas para que António Costa tivesse o congresso que sempre ambicionara: vazio na crítica e pleno na propaganda. Xeque-mate.