Comprei esta semana a revista inglesa PROG, que se ocupa de uma música morta, que existiu nos anos 70 e rapidamente desapareceu, tal como eu já comentei há uns meses nestas crónicas. A designação pretende resumir a duvidosa expressão «rock progressivo», algo que alguns designaram – pior – por «rock psicadélico», «rock sinfónico», «krautrock» (versão para os músicos alemães) ou outras preciosidades similares. Pois bem, começo eu a folhear a revista (assinale-se que tenho a mania de folhear as revistas do fim para o princípio) e vejo que os Van der Graaf Generator vão lançar (a 30 de Setembro) um novo álbum de estúdio, chamado «Do not disturb». Espantoso – penso eu – como o Peter Hammill, com quase 70 aninhos, ainda tem energia para tanto. E passo adiante, quer dizer, atrás. Subitamente, vejo a fotografia de um velhinho, do qual reconheci os traços, mas, assim de repente, tive dúvidas. Não; era mesmo ele. E ali estava, diante mim, o maior ídolo musical da minha adolescência e início da idade adulta: Peter Joseph Andrew Hammill.
Tive a sorte de começar a ser adolescente no princípio dos anos 70, e digo sorte porque foi nessa altura que a música «prog» britânica (com algumas ajudas externas) atingiu o máximo que é possível conceber. E tive também a sorte de gostar dessa música de forma avassaladora. Ora, o Peter Hammill foi o deus musical da minha adolescência.
Não sei bem explicar o que ele me significou, mas penso nele como um romântico à Beethoven, unindo a força, por vezes a violência, à beleza máxima. E como bom romântico, transmitiu-me uma dose de sofrimento incrível, julgo que também imediatamente assimilada por todos os adolescentes sofredores deste mundo. É também um excepcional poeta, mas agora vamos falar de música. Acima de tudo, foi o meu iniciador à dissonância, mostrando, à maneira de um Jarrett posterior e pertencente a um mundo totalmente diferente, até que ponto o sublime da arte exige um longo caminhar, cheio de angústias e atropelos de aflição, até, a dada altura, uma iluminação em plenitude nos anunciar a beleza absoluta da vida. Fez-me perceber muito cedo que o nosso destino humano é, na primeira fase, tropeçar no nosso mundo menor e vivido para podermos atingir, numa segunda, o divino da transfiguração no mundo outro que é o da sensibilidade artística. Ninguém, no universo da «prog music» o fez como o Peter Hammill; ninguém criou tanta beleza, e de modo tão brutal e tão sofrido, como ele.
Inundado de nostalgia, recorri aos braços do Spotify para perceber o que andava este homem a fazer aos quase 70 anos. E dei com um último álbum para mim desconhecido, «Merlin Atmos», lançado em 2015 e resultante de uma «tour» de 2013. Tinha o moço 65 anos. É difícil opinar sobre o que ouvi. Porque ouvi tudo aquilo com os ouvidos de há quarenta anos. Os músicos são os mesmos sempre, Hammill, Evans e Banton, e tocam ainda de forma admirável. Mas o Hammill tem a posição mais difícil, com uma voz que só pode falhar-lhe aqui e ali. Por isso, e para os iniciados desta música esquecida, proponho que ouçam, ou voltem a ouvir, o duplo álbum «Real Time», resultante de um concerto no Royal Festival Hall, de Londres, em 2005. E, aí, a voz de Hammill é quase sem mácula.
Para a seita dos que entendem o que tenho estado para aqui a dizer, o álbum apresenta uma lista imensa de músicas lendárias: começa, de forma triunfal, com «The undercover man», logo seguida por «Scorched Earth» (ambas de «Godbluff»), depois vêm a melodiosa «Refugees» (de «The least we can do is wave to each other») e várias outras até chegar à incrível «Childlike faith in childhood’s end» (do mítico «Still life»). Mais para o fim, uma interpretação muito boa daquela que considero a melhor música de sempre da «prog»: «Man-Erg», do melhor álbum do grupo, «Pawn Hearts», álbum de vanguarda absoluta que os Van der Graaf inexplicavelmente produziram em… 1971 (para ser rigoroso, há uma outra música de qualidade semelhante: «A louse is not a home», de um álbum de 74 assinado apenas por Peter Hammill: «The silent corner and the empty stage»). O álbum termina com a épica «Wondering» (de «World record»).
Estou convicto de que nunca existiu, no «rock progressivo», nada de semelhante. Não se trata de eu poder não conhecer. Não existiu mesmo. O Peter Hammill (com os seus múltiplos discos de assinatura pessoal a juntar aos do grupo) e os Van der Graaf Generator foram a melhor banda de sempre.