Há uma teoria interessante que ajuda a compreender a silly season, ou seja, o facto de as pessoas perderem parte das suas capacidades intelectuais com o calor. Que este ano foi imenso. Essa teoria baseia a explicação da pobreza dos países do Sul, por oposição à riqueza dos países do Norte, na temperatura média anual. Assim, perante o desconforto do exterior, os setentrionais concentrar-se-iam no trabalho, no estudo, na reflexão, na invenção e na inovação – tudo acompanhado por chávenas infindáveis de chá quente –, enquanto os meridionais seriam tolos se não aproveitassem a rua, as esplanadas, o mar e as praias, o sol, o calor e as cervejinhas geladas. Tudo isto para confessar que devo ter apanhado calor de mais, o que deve ter aumentado a minha perplexidade perante o mundo que me rodeia. Vou referir quatro exemplos de factos para mim incompreensíveis.
1. Começo pela imunidade dos diplomatas. Percebo a origem da coisa. E a necessidade da Convenção de Viena na altura. Mas, nos dias de hoje, não consigo compreender por que deve um diplomata ter imunidade em países civilizados, como é o caso (entre outros) dos países da União Europeia. Quem vai da Noruega para o Iraque – ou para qualquer outro país onde o respeito pelos direitos humanos seja questionável (para ser bonzinho) – precisa de imunidade. No caso contrário, não se justifica. As relações entre países têm de ser recíprocas? Todos sabemos que não. Não há qualquer justificação para o filho de um diplomata iraquiano cometer um crime em Portugal (não é importante agora saber se foi isso que aconteceu) e não ser punido. Não me interessa o que a Convenção de Viena diz sobre o tema. Porque me interesso menos pelas leis que existem e mais pelas que deviam existir. Se a Convenção não serve, faça-se outra.
2. Quanto aos burkinis, estou com o Paulo Chitas. Qualquer dia, proíbem-me de ir para a praia de calções e obrigam-me a andar de sunga. A loucura que se instalou em França é-me incompreensível. É óbvio que o burkini deve ser aceite nuns casos e proibido noutros. Mas não é preciso filosofar muito para saber quando: proibido enquanto a rapariga for menor e permitido depois, quando se torna livre de usar o que quiser. Se as autoridades francesas acham que estas mulheres adultas são violentadas por uma imposição dos maridos, montem um sistema que lhes permita sair de casa e divorciar-se sem correr riscos. E obriguem todos os cidadãos (imigrantes ou não) que residem em França a respeitar escrupulosamente os Direitos do Homem, antes das suas crenças ou especificidades culturais.
3. Não consigo perceber como há gente que se acha inteligente por gozar com o Trump. As opiniões sobre Trump são apriorísticas: o homem é uma besta e só diz asneiras. Pois bem, desta vez não disse. Defendeu que só deve entrar nos EUA quem mostrar colocar a civilização acima da cultura, ou seja (neste caso), quem der garantias de respeitar a Constituição Americana acima das crenças religiosas ou dos hábitos culturais de origem. Este princípio deveria ser respeitado de forma absoluta em todos os países acolhedores. Se fosse sempre assim, os direitos humanos estariam acima de todas as culturas e não haveria excisão feminina na Europa civilizada. Esta obsessão do politicamente correcto pode dar a vitória ao maluco e não à «pouco honesta» (na opinião de 60% dos eleitores americanos).
4. Finalmente, um tema mais difícil: fiquei altamente decepcionado com a reacção do Papa Francisco perante o terramoto. Disse que tinha ficado «comovido». Não compreendo como é que a Igreja Católica não se esforça mais para estancar a diminuição progressiva da fé e o aumento dos indivíduos sem religião no mundo.
O filósofo francês Marcel Conche elaborou uma tese muito interessante há uns anos, segundo a qual (ele retoma, aliás, uma ideia de Santo Agostinho) «a existência de um deus todo-poderoso, bom e omnisciente é incompatível com o sofrimento de uma criança inocente». Assim, perante as desgraças que acontecem todos os dias por esse mundo, os deuses de todas as religiões não podem ser simultaneamente bons, omniscientes e omnipotentes. Logo, ou não existem – que é algo que muita gente acaba por ir concluindo –, ou a definição da divindade tem de mudar, aceitando-se, por exemplo, que ela não é omnisciente, que não controla tudo o que acontece – como alguns católicos que conheço me dizem. Penso que Francisco devia ter aproveitado para promover uma reflexão sobre esta concepção do divino no seio do catolicismo, para que certos acontecimentos não se tornem, para o crente reflectido, totalmente incongruentes. Ou, no mínimo, deveria ter perguntado, como o seu antecessor Bento XVI quando falava a propósito do Holocausto: «Deus, onde estavas tu nessa altura»?