O Atlântico, mundo de água que rasga o globo de norte a sul e separa a Eurásia e a África das Américas, esconde ainda alguns segredos, embora mal guardados, porque o mundo fica cada vez mais pequeno ao ser cada vez mais conhecido. Um dos segredos ainda relativamente encobertos por névoas persistentes são as ilhas dos Açores. Nove, por sinal. Brotaram dos muitos abismos que sulcam os fundos dos mares e separam as muitas placas tectónicas que dividem o planeta e lhe dão forma. Aqui, nos Açores, o centro do mundo para quem cá está, os homens, flutuando com as suas ilhas quais jangadas de pedra, sentem muitas vezes o irresistível chamamento de outros lugares. E teimam, enfeitiçados pelo manto líquido que os aprisiona, mas que sempre muda de cor e de forma consoante a hora do dia e da noite, teimam, dizia eu, a fazer do mar estrada, independentemente das dificuldades e das consequências que isso possa ter. Há ilhéus, portanto, que sabem que o mar pode ser caminho. Contudo, neste pequeno grupo, muito poucos se põem a caminho. Andar sobre as águas é outra história. É preciso crer. Sem crença verdadeira, pode bem acontecer como àquele Pedro, o apóstolo, que, fustigado pelo vento, perdeu a fé e começou a afundar-se, salvando-se apenas com a pronta intervenção de Jesus.
Os homens desta nossa crónica, dois açorianos, o João Barbosa Medeiros e o Mário Leandro de Medeiros, fizeram do mar caminho. Muitos dirão que as duas viagens relatadas mais adiante neste texto seriam impossíveis de concretizar sem a ajuda do divino. Muito bem. Talvez assim tenha sido, mas nunca por falta de fé dos nossos dois heróis. Caso lhes tenha acontecido duvidarem, foi lá no fundo das suas almas e muito em segredo, longe dos olhos um do outro, para que as forças do húmido elemento nunca se soltassem.
Iniciaram a sua primeira longa caminhada pelo mar juntos no dia 10 de junho de 1994, às cinco horas de um sombrio fim de tarde da ilha. Ambos, apesar de muito jovens, já contavam com anos de experiência de vela. Eram e são como irmãos e foi assim, ligados por uma grande amizade, que se fizeram ao mar num catamarã de cinco metros e meio.
Naquele 10 de junho, quem visse o barquinho sair da marina Pero de Teive, em Ponta Delgada, o Dart 18, pensaria porventura tratar-se de dois jovens velejadores que iam dar um passeio ali pelas redondezas. Pois, se alguém fez semelhante conjetura, enganou-se redondamente. O João, de alcunha Garoupa, e o Mário, de alcunha Sabão, tinham apontado a proa do seu pequeno barco ao longínquo arquipélago da Madeira, localizado a 550 milhas náuticas do ponto de origem, São Miguel, nos Açores.
Eram tão jovens que ainda lamentavam deixar as mulheres. O Sabão, na véspera, tinha estado horas a ouvir música, lavado em lágrimas, antecipando as saudades que teria da namorada e o Garoupa, dorido, mas sem lágrimas, mantivera-se compreensivelmente apreensivo, por deixar a mulher nos últimos meses de uma gravidez. O filho nasceu três dias depois de atingirem terra firme. A aventura comandava a vida. Belos tempos!
Em junho, o anticiclone posicionava-se a norte do arquipélago dos Açores, trazendo ventos moderados para a extensa navegação à estima e a claridade durável dos dias era a melhor arma que o solstício de verão lhes poderia ofertar na longa travessia. Apenas munidos de uma bússola, de um GPS dos anos 90, de um rádio VHF e de um transmissor de localização EPIRB (Emergency Posicion Indicated Radio Beacon), para ser acionado apenas em caso de emergência, os dois jovens mareantes lançaram-se na imensidão do líquido volátil.
– E faziam comunicações com terra?- perguntámos à toa.
– As únicas que tínhamos eram entre nós e poucas. – resposta certeira de Mário.
Pudera não! Iam ilegalíssimos! Não queriam que os ouvissem. Nem pensar em inadvertidamente alertar as autoridades que, caso soubessem da sua viagem, os intercetariam por via aérea ou marítima, o que não seria de admirar, pois o pequeno catamarã apenas estava licenciado para navegar até meia milha fora da costa.
São Miguel desapareceu no horizonte. Antes disso, era ilha cheia e verde com os seus picos recortados no céu; depois, ilha esborratada de forma incerta presa nas águas; por fim, mancha azulada no horizonte. Nuvem ou ilha? A destrinça era cada vez mais difícil porque a noite caía. Passaram perto dos Ilhéus das Formigas, mesmo ao lado da ilha mais oriental dos Açores, Santa Maria, e a casca de noz sulcava teimosamente, quase desafiadora, o oceano entre os dois distantes arquipélagos.
É sabido que o mar à noite é preto. Em alto mar, é preto retinto. Sem luar, só há negrume. O céu também é negro e algures, a toda a volta do barco, não se distingue o mar do céu, exceto nos lugares onde friamente cintilam as estrelas. A Madeira estava a cinco dias e cinco noites de viagem. Dormir poderia custar a vida. Do cimo de um casco a 40 centímetros da água, vê-se muito bem a superfície negra que rodeia o barco e adivinha-se claramente o negrume dos abismos por onde nadam todo o tipo de peixes. Dez minutos de sono num dia ou numa noite eram um luxo para o duo de combate. Os fatos estanques que usavam não eram suficientemente quentes para contrariar o frio gélido do atlântico, a comida era pouca e ia dentro de um saco de plástico amarrado ao mastro. Os aventureiros – pasme-se – tinham apenas cinco litros de água, quantidade manifestamente insuficiente, mas que teria que chegar para os cinco dias da saga. O peso em demasia no barco poderia trazer-lhes um desfecho fatal. O posicionamento dos dois corpos em cima da embarcação e o equilíbrio eram outro fator fundamental para que o leve lenho não capotasse e a atenção, sobretudo na escuridão da noite, que no mar é má conselheira, foi sempre – assim teria que ser – a cem por cento. A embarcação, na obscuridade de noites nubladas, sem Lua, e por isso com pouca ou nenhuma visibilidade, poderia embater contra um objeto ou animal flutuando à superfície, ou ser abalroada por um grande navio. Todos os cuidados eram poucos. Navegaram com vento de 15 nós e com mar a variar.
O GPS era ligado só uma vez por dia para que a bateria resistisse e só nessa altura marcavam a posição na carta, avaliando os marinheiros a distância que haviam ganho, ou perdido, face à estima. Tudo era rudimentar e instável na capa líquida atlântica.
Contrariando agoiros, a 15 de junho Garoupa e Sabão chegaram à Madeira, cansados mas vivos. Não viram nem barcos, nem aviões. Estiveram sozinhos no mar. Foram donos dele.
O desembarque na marina de São Lázaro, no Funchal, não levantou quaisquer suspeitas. Não havia polícia marítima, nem outras entidades policiais para lhes perguntarem como se atreveram a desrespeitar a lei enfrentando um mar imenso numa tão pequena e frágil embarcação. Provavelmente não sabiam de nada, nem lhes passava pela cabeça que tinha chegado um barco dos Açores. Mesmo ancorando junto da polícia, não tendo nada no catamarã, o mais provável seria os agentes pensarem que se tratava de um barco local que tinha ido dar uma volta. E que volta! Tinham à sua espera três pessoas que os ajudaram: o Ricardo Sá, entendedor do mundo náutico, que os amparou de uma forma muito carinhosa; o Pedro Borges, um amigo que foi de propósito assistir à chegada; e a prima do João, a Teresa, que estava a tirar o curso de Educação Física no Funchal.
Mas o atrevimento não parou por aí. Se tudo corresse bem, havia que tentar o mesmo com o longínquo continente português. Vamos? Vamos! Quando? Daqui a três anos – combinaram. E a 12 de junho de 1997, pela uma da tarde e já a bordo de uma nova embarcação, o pequeno e frágil Mystere 6.0, outro catamarã, voltaram a atirar-se ao mar para percorrer 850 milhas náuticas. Cascais seria o porto seguro. O Mystere 6.0 era de construção canadiana e um bocadinho maior do que o Dart, mas não muito mais. Era uma embarcação mais veloz e prometia outro conforto, que, com efeito, era nenhum.
A Lua, que nunca aparecera na travessia Açores-Madeira, fator fundamental na navegação à vela durante a noite, foi uma ajuda preciosa na viagem para Cascais, permitindo alguma visibilidade e segurança na difícil navegação noturna, pois o catamarã não era iluminado. Um abalroamento ou choque com um objeto ou animal a flutuar poria fim a tudo.
O Dart, em condições de mar bom e com vento de 15 a 20 nós poderia navegar facilmente a 15 nós com pontas de 20 a 22 milhas por hora. Já o Mystere 6.0, um barco mais rápido em todas as mareações, facilmente atingia velocidades de 25 nós. Mas na última noite, a quinta da jornada, a 120 milhas de Cascais, com grande desgaste acumulado, pois os aventureiros tinham estado quatro dias a navegar quase sem dormir, a situação complicou-se. O vento começou a soprar forte, chegou a atingir cerca de 30 nós e o mar encapelou-se ao ponto dos marinheiros terem de ficar em árvore seca, ou apenas com o mastro e um pouco da vela de estai para conseguirem dar algum rumo ao barco. Calculando que o fim da viagem terminaria ali, vestiram fatos de sobrevivência sobre os fatos estanques que usaram 24 horas por dia. O cansaço era quase insuportável, mas tiveram discernimento para enfiar o rádio VHF portátil, o único que tinham, e o EPIRB, dentro dos fatos para os proteger em caso da embarcação quebrar-se ou virar. Embora este arrufo da tempestade, a calma reinava na embarcação, o trabalho de equipa era mantido e as mentes persistiam focadas no equilíbrio do catamarã. Foram várias as vezes que estiveram à beira de capotar quando o Mystere 6.0 mal se sustinha na fúria das ondas. “Só quem estava no barco poderia avaliar o perigo que corria” – precisou Sabão. Para eles, o que era o caos, seriam cócegas num navio de grande porte.
– “Foi uma das noites mais longas da minha vida!” – admitiu. Os dois aventureiros avistaram cerca de quatro navios e alguns aviões. Um deles ainda diminuiu a velocidade, provavelmente porque detetou no radar o minúsculo Mystere 6.0, mas, à falta de contato, prosseguiu imperturbável na sua rota sem que tentasse qualquer contato.
O frio, um dos maiores inimigos, juntamente com as poucas horas de sono e a falta de comida, foram o trio devastador. “Era duro passar a noite ao relento levando constantemente com água salgada na cara, que vinha das proas do barco, com cascos de uns poucos 40 cm de altura. Deitados, se deixássemos cair os braços, as mãos mergulhavam nas águas frias. O barco deslizava rasteiramente sobre a superfície” – relatou-nos Marinho.
Por fim, a terra à vista deu direito ao festejo dos dois moribundos, que, comovidos, se abraçaram. A polícia marítima esperava os fora-da-lei, porque José Augusto, irmão de Mário, preocupado com a demora de notícias dos marinheiros que já contavam com cinco dias de mar, telefonou para o Clube Naval de Cascais a perguntar se teria chegado um catamarã de pequenas dimensões com dois navegantes a bordo. Atendeu-lhe o telefonema um empregado do clube que, não sabendo de nada, decidiu passar a chamada à polícia marítima. João e Mário caíam na boca do lobo.
À chegada à praia, a polícia acercou-se da embarcação, verificou a existência de fatos de sobrevivência, de artigos embrulhados em plásticos, incluindo um gps, rádio VHF, beacon, entre outras evidências de que a casca de noz não teria vindo de ali perto. Os dois navegantes de aspeto medonho, desgastados e alucinados, foram detidos.
Mota Amaral, então Presidente do Governo Regional dos Açores, solidarizou-se para com os jovens açorianos e interveio junto do alto comando da marinha para que os jovens fossem libertados, e assim aconteceu.
Garoupa e o Sabão respiraram de novo as brisas da liberdade.
No final do meu diálogo com Mário Leandro de Medeiros, o Sabão, tive curiosidade em saber ainda se a idade adulta, a vinda de um filho e os compromissos familiares, o trabalho, em suma a responsabilidade de outras vivências em terra não o teriam destituído do vício azul, optando por voltar de uma vez por todas as costas ao perigo eminente das grandes navegações. A resposta não se fez esperar: “com o auxílio de um barco de apoio, um dia tentarei fazer uma navegação entre Ponta Delgada e Cascais em prancha de windsurf.”