Eram malas enormes, pretas, de cartão, decoradas com bonitas ferragens de metal polidas pelas empregadas, na altura as denominadas criadas por terem a sua criação na casa dos senhores.
A roupa, primorosamente asseada, era milimetricamente disposta dentro dos “malões” para que coubesse em quantidade, pois as estadias em Lisboa eram, no mínimo, de três meses. Havia que levar vestidos de cerimónia, entre a demais indumentária, quase todos pretos ou cinzentos, pois o luto do falecido marido era respeitado até à morte. Entre a roupa da avó, eram dispostos ramos de alfazema. E que perfume emanava das malas abertas! Que aroma ligado a presença tão querida, irreversivelmente entranhada na memória dos mais chegados! Tenho hoje alfazemas plantadas no jardim para poder ter em casa o cheiro da avó. Ela ali está todos os dias em perfume.
O Carvalho Araújo, navio ancorado no porto de Ponta Delgada, na ilha açoriana de São Miguel, aguardava a avó e outros passageiros para os transportar à capital do ainda império. Decorriam tempos do Estado Novo e de Salazar.
Chamava-se Isabel, mas tratávamo-la por Bel, avó Bel; Bel, primeiro por ser bela aos nossos olhos; depois por ser Baronesa da Fonte Bela, título monárquico atribuído, em 1836, pela Rainha D. Maria II ao ascendente do marido, Jacinto Inácio Rodrigues da Silveira, um político liberal e comerciante abastado de Ponta Delgada, residente no Paço Fonte Bela, ou Palácio Fonte Bela, hoje Escola Secundária Antero de Quental. Isabel Maria Fernandes Gil (1900-1995), a avó, casou com um primo, Jacinto Inácio da Silveira de Andrade Albuquerque Gago da Câmara, 4º Barão da Fonte Bela, mas já vinha de uma família nobiliárquica. Com efeito, os seus pais, Jacinto Fernandes Gil e Maria de Andrade Albuquerque Bettencourt, foram segundos Viscondes do Porto Formoso. Era ainda aparentada com os Viscondes da Praia, Borges de Medeiros, ou Borges Coutinho, e com os Viscondes de Santa Catarina, Rebelo Borges de Castro.
Isabel tinha também ligações com as famílias Álvares Cabral e Raposo do Amaral.
Idolatrava os doze netos, sobretudo aqueles que passavam temporadas com ela, fazendo-lhe companhia no seu enorme casarão, à Rua dos Mercadores, no centro de Ponta Delgada.
Na sua delicada feminilidade, tinha uma voz grossa, quase como a de um homem, a musicar uns olhos docemente sorridentes e um cabelo que era branco acinzentado, sempre fofo, alto e irrepreensivelmente arranjado.
A avó era benfiquista ferrenha numa família de sportinguistas, com exceção de um neto por afinidade, o Carlos, casado com a neta Maria Margarida, que lhe fazia a perna nos delírios fervorosos de exaltação à águia.
O apito era tão estrondoso que a cidade parecia estremecer e lá partia a avó no navio de sempre que diminuía pouco a pouco conforme galgava a distância. Antes, tínhamos inundado a avó com beijos doces de crianças desconsoladas a assistir ao largar amarras da nossa querida senhora dos anéis.
E quão saboroso é ainda hoje recordarmo-nos dela a retesar os músculos da face para reprimir o choro. Embora forte, como era, ou quisera ser, nunca conseguiu deixar de chorar connosco, enquanto nos abraçava contra as suas saias plissadas. Era triste ver a avó triste, mas não havia nada a fazer. Nascia ali, todos os anos, junto ao Carvalho Araújo, um coro desconsolado de despedida às vezes com treze sons saídos dos mais afetuosos territórios do coração. Quão importantes são as avós!… E lá ia ela a acenar sob o fumo branco debitado pela enorme chaminé como que a esvair-se de nós. Navio “tirano”, para onde levas a nossa avó?!
Bel ficava a residir na velha Residencial América, por ser central, em Picoas, do outro lado do Teatro Villaret, na Fontes Pereira de Melo, uma residencial muito procurada por açorianos. Também ficava ali para estar próxima da moradia da sua irmã, Maria, igualmente viúva. Maria convidava-a a ficar lá em casa, mas a avó era independente e queria poder receber filhos e netos quando estes passassem por Lisboa. Bel – lembro-me – escolhia sempre os quartos mais altos para poder usufruir de uma melhor vista sobre o Saldanha e a bela Lisboa norte e, quando não jantava fora, comia no último andar da América, servida por um séquito de empregados que a apaparicavam, porque a adoravam. Tinha um gargalhar lindo e cativante.
Isabel era crítica e justa. Aprendemos a ser democráticos com ela, quando, no país, não se vislumbravam laivos de democracia, nem se imaginava o que era isso de liberdade de expressão, de direitos para todos, de um país afastado do espetro da guerra. A todos tratava com a fineza distinta de uma igual.
A avó, que teve uma explicadora francesa, afrancesava as palavras, dizendo “garage” em vez de garagem, e “enveloppe” em vez de envelope, e tinha expressões como “que disparate”, “ó piqueno”, “desatinado”, “mulher tirana”, “espantada”, “cô diacho”, entre outros termos que lhe evidenciavam um modo muito peculiar de se exprimir, que era um encanto e que nos fazia rir, sem que ela nos levasse a mal.
Na sua casa de Ponta Delgada, cheia de corredores e de escadarias que eram a delícia das nossas jovens e impetuosas correrias, a avó Bel cozinhava deliciosas tigelinhas de doce de abóbora que polvilhava com canela, e guardava-as no armário da porta de rede, junto à cozinha, sabendo que pouco depois as iríamos surripiar e que perderíamos parte do apetite para as refeições principais. Deseducação? Não, educação de avó.
Para além de Ponta Delgada e de Lisboa, Bel dividia o seu tempo com o vale das Furnas. Amava a então freguesia atrevidamente enfiada no fundo da cratera de um vulcão, por isso decidiu comprar lá uma casa. As caldeiras, que são narinas do monstro expelindo lava e cheiro a enxofre, as águas termais, os bolos lêvedos, a comida cozida nas entranhas da terra à beira da lagoa, as escarpas montanhosas a subirem o intenso verde até ao céu, os parentes próximos ali também com casas de veraneio e a singeleza e alegria natural dos furnenses encantavam-na. Por outro lado, essa terra quente vulcânica da ilha oferecia-lhe um jardim atrás da casa, de que ela tanto se orgulhava, atravessado quase a direito por um regato de águas límpidas. Ali abundavam as cheirosas alfazemas, ladeando citrinos laranja e amarelo, que ela ia colhendo em dias solarengos do vale, acompanhada do seu inseparável chapéu de palha que tanta graça lhe dava.
Visitava muitas vezes a avó, fosse onde fosse, estivesse onde estivesse. E sempre que ficava na casa da cidade, dormia no seu quarto, num canapé que ela tinha preparado para receber qualquer um dos doze netos que quisesse dormir com ela. Eu queria. E, no escuro da noite, atravessando a distância que nos separava, os nossos braços estendiam-se entre os leitos e dávamos as mãos. Uma espécie de paz sonolenta pesava-me nas pálpebras, varrendo todos os medos. Tranquilamente, adormecia.