Estávamos em 2008. A construção do novo terminal marítimo de cruzeiros da cidade de Ponta Delgada, implantado sobre uma plataforma conquistada ao mar, estava a terminar.
Na Horta, planeava-se a requalificação e o reordenamento da frente marítima da cidade, a qual incluía também um terminal marítimo de cruzeiros com um molhe de 393 metros e duas rampas ro-ro para ferries.
Entretanto, Lisboa complementava os cais de cruzeiros com instalações de embarque e desembarque para 4500 passageiros, construindo um moderno terminal em Santa Apolónia, hoje uma referência no segmento do turismo de cruzeiros mundial.
Para fazer face a um setor do mercado turístico cada vez mais competitivo e exigente, sobretudo nas Canárias e no Norte de África, a Madeira avançou também na mesma altura para uma nova gare marítima no porto do Funchal e o Porto Santo seguiu-lhe as pisadas.
Nenhuma destas localidades, ao contrário de Angra do Heroísmo, é património mundial da humanidade. Em todos os mencionados locais, à exceção de Angra, foram construídos terminais que ficam muito próximos dos centros históricos e culturais das cidades, permitindo aos visitantes o acesso fácil e rápido aos pontos de maior afluência turística.
Os resultados desta política de criação de infraestruturas estão à vista de todos. Em 2018, Portugal foi um dos países mais beneficiados com o “boom” da indústria mundial de cruzeiros e prevê-se que tenha até ao próximo ano um crescimento da ordem dos 23% a 25% em número de navios e capacidade para passageiros.
Na ilha Terceira, o rumo dos acontecimentos, infelizmente, não foi bem entendido. Em 2008, após a Presidente da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, Andreia Cardoso, na sua tomada de posse, ter proposto a construção de um cais de cruzeiros na baía de Angra, adaptando-se, uma vez mais, o secular Porto de Pipas aos novos tempos e potenciando-se o centro histórico da cidade património mundial à atividade turística, desencadeou-se um enredo digno de uma novela mexicana, com conhecidos trambolhos da política local, sem ideias, sem estratégia e sem qualquer visão de futuro e, sobre tudo e sobre todos, destacou-se como estrela um conhecido ratão de dança da política, hoje arremessado pelos seus próprios pares para os territórios do descrédito total. Vejamos algumas das peripécias da nossa apelidada novela mexicana.
Após a garantia das autoridades regionais, encimadas por Carlos César, que o cais de cruzeiros seria construído em Angra do Heroísmo, adaptado artificialmente à fisionomia da baía e ao casco histórico da cidade, elaborou-se um estudo prévio para a construção do terminal de cruzeiros que ajustasse o velho Porto de Pipas à realidade económica atual da ilha.
A discussão pública seguiu-se a esse estudo, incluindo debates televisivos, conferências e opiniões exaltadas na comunicação social. Houve quem garantisse a existência de magníficas riquezas arqueológicas no fundo da baía de Angra, algo que, até à data, ninguém provou existir, e que, a haver, do ponto de vista turístico, ninguém explorou; houve ainda quem considerasse que o cais de cruzeiros era dinheiro lançado ao mar e quem, de forma séria e construtiva, propusesse outras alternativas de implantação do cais junto à baía por forma a preservar os alegados tesouros sepultados no fundo do mar.
Contrariando os que se opunham à construção do cais, o processo prosseguiu e, a 25 de outubro de 2011, foi apresentado no Centro Cultural de Angra do Heroísmo o projeto de execução do futuro cais de cruzeiros, a ser construído na baía de Angra do Heroísmo. Este comportava 350 metros de comprimento, fundos de serviço com 12 metros, uma plataforma de apoio com 20 metros de largura, um terrapleno com 20 mil metros quadrados e uma rampa ro-ro para ferries. Este projeto foi, durante vários meses, testado quanto à ondulação tendo sido aprovado pelo LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
O custo estimado da obra rondava os sessenta milhões de euros.
Escassos quatro meses depois – pasme-se – foi apresentada uma petição ao Parlamento Europeu, reunindo mais de 1500 assinaturas, na sua maior parte de terceirenses, onde se solicitava que fossem recusadas verbas comunitárias para a construção desta obra. E aqui acaba o primeiro capítulo deste dramalhão.
O segundo capítulo envolve alguns partidos que quiseram tirar proveitos políticos da situação, porque na altura se estava em véspera de eleições. Esta segunda etapa consiste numa campanha de descredibilização do inegável potencial económico que a indústria de cruzeiros representa para os destinos, bem documentada e reconhecida a nível mundial, sonegando-se o efeito multiplicador dos benefícios positivos e destacando-se os negativos.
Acrescente-se que os custos económicos associados à construção de infraestruturas de apoio a este tipo de turismo, aceite como natural para a ilha de São Miguel por todos os açorianos, foi, no que tocou à Terceira, e por alguns terceirenses, objeto de contestação. Porquê? Que proveito tiram os terceirenses em deixar-se ficar para trás? Tal como em alguns filmes, a atitude dos terceirenses constitui um retumbante mistério, embora estejamos habituados às suas sucessivas rejeições do novo, convencidos que o antigo jamais será vencido. E, curiosamente, à revelia da mudança que não para de fazer o mundo avançar, querem alguns terceirenses uma ilha cristalizada, paralisada, estagnada. Para quê? Para ficarem sós, ouvindo o vento assobiar na esquadria das ruas da cidade património mundial num inverno negro qualquer.
O sucesso do turismo de cruzeiros verificado em São Miguel, com reflexos muito positivos para a economia da ilha do Arcanjo (há relativamente pouco tempo atrás, face à visita à cidade de Ponta Delgada de quatro navios de cruzeiro, em simultâneo no mesmo dia, todos os restaurantes da urbe, e são muitos, esgotaram os lugares disponíveis) levou, em Angra, os comerciantes, os donos de restaurantes, os taxistas, empresas de animação turística e de transportes, fabricantes de souvenirs e artesãos, isto para ficarmos por aqui, a perceberem, embora tardiamente, o logro para onde a leviandade de certos políticos e a sua ganância por votos os empurraram.
Posto isto, a 12 de outubro de 2018 é publicado no Diário da República uma resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores para a construção de um cais de cruzeiros na ilha Terceira, mas na baía da Praia da Vitória. Essa opção alternativa a Angra, segundo a opinião de técnicos abalizados e de cidadãos terceirenses, do ponto de vista operacional e técnico, não é, de forma alguma, a mais adequada.
Primeiro, porque se localizará junto a um parque industrial, o que, como se subentende, não será, do ponto de vista paisagístico, o local mais adequado para visitas turísticas. Segundo, porque afetará negativamente os ecossistemas da baía com os seus pauis Ramsar, uma das principais apostas da Câmara Municipal da Praia da Vitória para a sua orla costeira e que implica rigorosas práticas ambientais de proteção. Terceiro, porque, a localizar-se no denominado “cais americano”, irá estender-se por uma zona de acumulação de areias que obriga a dragagens periódicas, com os respetivos custos associados, que não são poucos. Atente-se que o desassoreamento do fundo arenoso na marina da Praia da Vitória é prática comum e necessária, sobretudo quando há eventos de agitação marítima, para que os barcos não encalhem. Existem ainda evidências de deslocações de tetrápodes de proteção ao porto, por se encontrarem assentes sobre areia, que obrigam a reparações frequentes. Quinto, essa opção implicará a destruição e a degradação de algumas das melhores praias da baía, já com infraestruturas turísticas instaladas à volta. Sexto, o molhe estará a mais de vinte e cinco quilómetros de distância da cidade património mundial, um dos principais chamarizes turísticos de Portugal. Sétimo, porque, do ponto de vista do turismo convencional, o concelho da Praia da Vitória apresenta condições únicas dada a excelência das suas zonas balneares.
Em termos de turismo de cruzeiros, a cidade de Angra, sendo património mundial e tendo o cais bem próximo, reúne em si vantagens para o turismo de cruzeiros. Há que preservar as excelentes praias do concelho da Praia da Vitória; há que salvaguardar esta que é uma das mais promissoras baías da Europa para os desportos náuticos e preservar os peculiares ecossistemas costeiros refletidos na impressionante biodiversidade dos seus pauis; há que manter a Praia um local aprazível de ser frequentado pelo turismo convencional.
A opção da construção do cais de cruzeiros na baía de Angra, segundo especialistas, é a ideal para a Terceira. Não se pode ficar por uma rampa ro-ro para servir passageiros das ilhas do triângulo na denominada linha lilás e por um molhe de 180 metros empoleirado num pilar de betão do tipo duque de Alba para servir apenas cruzeiros de médio curso. Justifica-se em Angra um grande cais, primeiro porque se centra no ajustamento à baía e às duas fortalezas que a guardam; depois, porque potencia a proximidade com a malha urbana da cidade património mundial, única nos Açores e em Portugal; também porque goza de um enquadramento natural único, com o magnífico vulcão do Monte Brasil em fundo.
A ampliação que se prevê para o Porto de Pipas não se pode ficar por um acrescento de 100 metros limitando a atracagem de navios de grande porte, cingindo-o apenas a cruzeiros temáticos ou de exposição, embora se defenda que estes trazem o turista mais seletivo e com maior poder económico.
Não obstante uma proposta do PSD apresentada à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores propondo a construção do cais de cruzeiros na Praia da Vitória ter sido aprovada por unanimidade (estranha unanimidade para quem raramente está de acordo …), há quem defenda que ainda se vai a tempo de repensar este dossier e de, eventualmente, dar um passo atrás avançando-se para a primeira solução, por ser a mais inteligível e consensual entre a maioria dos terceirenses.
A construção do cais de cruzeiros em Angra do Heroísmo potencia o desenvolvimento turístico do concelho, em particular, e da ilha, em geral, oferecendo logo ali uma das mais belas cidades património de Portugal.
Angra, da Terceira, a que foi cidade capital do Reino duas vezes, na época filipina e, posteriormente, nas lutas liberais, merece outro destino. Haja bom senso, vontade política e repensem-se as decisões. Faça-se o prometido cais de cruzeiros antes que seja tarde.