Caminhei sobre a erva húmida que cobria a serra fria e verde. Matas de criptomérias, repentinas, também elas verdes rasgavam os montes inclinados e, por uma pequena janela de arvorezinhas, avistei, lá fundo, plana, sombria, uma das lagoas. Jazia misteriosa. Também ela verde, verde. Os cumes redondos à volta estavam polvilhados de hortênsias velhas. Tinham perdido o seu azul intenso e rastejavam pardas e desfeitas entre a bruma branca dispersa e móvel. Ao meu lado direito, desenhava-se precisamente uma robusta parede de hortênsias abanada pelo vento. O marulhar das folhas parecia o som do ar rápido, ríspido, que me raspava o corpo. Para lá, sabia a estrada de terra batida e o abismo da cratera. Para cá, era o mar metálico, cinzento, baço. No horizonte, no mar alto, a fechar a distância e a ilha, via-se aquela linha azul de céu e mar. Era o fim do denso capacete que ameaçava cair em águas mil sobre terra firme. Perto, vi um homem que se curvava para o pasto, arrancando o espigão de ferro, preso à corrente, presa à vaca. Dava corda às pacientes vacas, animais brancos, malhados de preto ou pretos malhados de branco. E, neste quadro, sem querer, de forma natural, como um pensamento sonoro e triste, ocorreu-me dolentemente o som tocante da “Chamateia”, que não mais me largou o resto do dia para bem dos meus pecados.
A “Chamateia” é uma balada original, da autoria de dois estimados amigos meus açorianos, o micaelense Luís Alberto Bettencourt, que criou a música, e o mariense António Melo Sousa, que escreveu a letra ilhoa:
No berço que a ilha encerra
Bebo as rimas desse canto,
No mar alto dessa terra
Nada a razão do meu pranto.
Mas no terreiro da vida
O jantar serve de ceia,
E mesmo a dor mais sentida
Dá lugar à Sapateia.
Ó meu bem, ó Chamarrita
Meu alento e vai e vem,
Vou embarcar nesta dança
Sapateia, ó meu bem!
Se a Sapateia não der
Pr’a acalmar minh’a alma inquieta,
Estou p’ró que der e vier
Nas voltas da Chamarrita.
Chamarrita, Sapateia
Eu quero é contradizer,
O alento desta bruma
Que às vezes me quer vencer.
Ó meu bem, ó Chamarrita
Meu alento e vai e vem,
Vou embarcar nesta dança
Sapateia, ó meu bem.
Esta balada, que se espraia em sentimentos de alegria evocando festejos de chamarritas dançadas em terreiros por pares enlaçados e de sapateias com os tacos dos sapatos a baterem ritmadamente o chão, mas também de tristeza face ao mar alto e à quietude da ilha que fazem o alento ir e vir sendo inquietação e pranto, toca qualquer açoriano, de oriente a ocidente das ilhas, mais aqueles que, longe, na diáspora, se consolam nos poemas e nas músicas da ilha.
Luís Bettencourt foi convidado pelo veterano realizador da RTP Açores José Medeiros para compor uma música de temática açoriana para um programa de televisão intitulado “Balada do Atlântico”, do qual era realizador. Havia urgência, pois já estavam em Lisboa a gravar a banda sonora do programa. A ideia era uma música que materializasse de alguma forma o ser ilhéu, que traduzisse a vivência do ilhéu, enfim, que comportasse a insularidade e a desse a conhecer aos não ilhéus. “ A condição insular” diz Luís Bettencourt relativamente ao propósito da “Chamateia” e às dificuldades da composição e ao papel que a letra ou poema pode desempenhar “ suscita um imaginário diversificado e a mensagem deve chegar àqueles que têm dificuldades em entender o que é isso de ser ilhéu, daí a minha, ou a nossa, responsabilidade ser maior. Inspiração foi tudo quanto precisei. Sentei-me e invoquei Nemésio, Antero e outros dos maiores, para que me socorressem. Socorreu-me alguém bem perto, o António Melo Sousa, amigo de longa data que me tranquilizou fazendo-me chegar um belo poema. Eu já conhecia o seu talento multifacetado e a sua obra bem palpável como escritor de canções. A viagem de António Sousa escrevendo para a música é infinita. Como somos ambos nascidos em ilhas, eu em São Miguel, ele em Santa Maria, tornava-se mais fácil exprimir o sentimento insular, ele a escrever, eu a musicar”.
Acrescenta ainda o compositor que a amizade entre os dois, músico e poeta, era tão longa e tão segura que “não foi preciso [agendarem] um encontro, nem tão pouco [trocarem] opiniões sobre o conteúdo escrito pelo António. No seu texto, a ilha estava toda lá envolta em nevoeiro, em mistério, sobretudo em saudade… Eu não precisava de mais!”
Segundo Bettencourt, bastou dedilhar as cordas do violão e procurar os acordes certos onde “a letra pudesse adormecer num leito de doçura e, devagarinho, [foi] construindo sequências de tons menores inspirados no arrasto da maresia, na busca do porto seguro” e, como tão bem escreveu Pessoa, “a minha alma parecia uma orquestra oculta” … e confesso que me soube bem.
António Zambujo cantou a música a solo no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, apenas acompanhado pelo seu violão e já a havia interpretado com o mundialmente conhecido coro feminino búlgaro, Bulgarian Voices Angelite.
O grupo “Canto daqui” também interpreta a canção admiravelmente acompanhado pela orquestra municipal de Santiago, entre muitos outros intérpretes que quiseram adotar esta música açoriana.
No berço que a ilha encerra, deixo-vos as rimas deste canto. Quem não está na ilha, faça por beber a açorianidade à mão da mais bonita balada açoriana da atualidade, a bela “Chamateia”.