Deixávamos as Flores para trás. A robusta fragata da marinha de guerra, saído o porto florentino, mergulhava com ferocidade a rija proa em ondas adamastorianas que atingiam o navio com essa violência que só os canais entre ilhas açorianas conhecem. O Corvo surgia, ainda distante, a cerca de dez milhas náuticas, a aguentar-se na crista das ondas, como boia salva-vidas a aguardar que a ela nos agarrássemos.
Estava sentado num canto da sala de oficiais, onde decorria um cocktail oferecido pelo comandante aos jornalistas, alinhando tópicos para uma entrevista para a RDP Internacional que faria, no Corvo, nessa mesma noite, ao então Presidente da República, Dr. Mário Soares, que também seguia na fragata. Estávamos em 1989 e decorria a Presidência Aberta de Soares na Região Autónoma dos Açores.
Mário Soares perguntou-me se não ia comer qualquer coisa.
– Não, Senhor Presidente, estou enjoado com este mar – respondi-lhe.
– João, venha comigo cá fora ao deque – disse-me, em tom quase de ordem.
Obedeci. Pediu-me então que me estirasse no chão e olhasse a ponta do mastro da fragata. Remédio santo. Fixei o olhar e foi-se o enjoo.
– Daqui não saio mais, Senhor Presidente, até chegarmos ao Corvo – afirmei, perentório.
– E a preparação para a minha entrevista? – questionou Soares.
– Trato disso depois – respondi-lhe. E separámo-nos a rir.
O Corvo foi o torrão atlântico escolhido por Soares para falar ao mundo lusófono, no final de um jantar que reunia toda a população da ilha, cerca de trezentas almas. Era, suponho, uma forma de homenagear o apego único à terra dos habitantes do mais exíguo território de Portugal.
A ilha do Corvo, a mais pequena do arquipélago dos Açores, curiosamente, nem chega a ter freguesias. A câmara municipal local assume a competência dos assuntos que caberiam às freguesias, que ali são inexistentes. Para quê? Só lá há um povoado, a Vila do Corvo.
Com seis quilómetros e meio de comprimento e quatro de largura, esta ilha é formada por uma elevação montanhosa vulcânica, o Monte Gordo, cujo topo abateu, gerando uma bela cratera com trezentos metros de profundidade e cerca de três quilómetros e meio de perímetro, o Caldeirão, que alberga uma lagoa com o mesmo nome. Há quem olhe para o seu interior e veja, na configuração natural de línguas de terra estendidas entre lençóis de água parada, as nove ilhas dos Açores. Pura imaginação? Há que ir lá e observar.
O Estreitinho é a zona mais alta da ilha, com setecentos e vinte metros de altitude, destacando-se, ainda em altura, outras zonas como o Morro dos Homens, a Coroa do Pico, a Lomba Redonda, o Espigãozinho, o Serrão Alto e o Morro da Fonte. Só isto e nada mais. As pastagens e o gado estão nas Terras Altas e é no Fojo que se pratica a agricultura.
Reza a lenda do Cavaleiro da Ilha do Corvo que os navegadores em aproximação à ilha avistavam um cavaleiro montado num alazão apenas apoiado nas patas de trás empunhando uma espada que apontava para noroeste, em direção ao novo mundo.
A sul, o Porto da Casa acolhe a navegação comercial e a oeste uma pequena pista do aeródromo corvino recebe, desde setembro de 1983, aviões de porte pequeno. Antes, apenas aeronaves da Força Aérea Portuguesa; hoje os pequenos Dash 200, da Sata Air Azores.
Antes da existência deste aeródromo, não sendo possível a acostagem dos navios cargueiros, nem o transbordo da carga para terra em pequenas barcaças, dada a força do mar, faltavam géneros alimentícios na ilha e o povo, muito tempo sem abastecimento, resistia heroicamente partilhando entre si os seus parcos haveres.
No inverno, a decisão da chefia da RDP Açores de enviar um repórter para o Corvo quase sempre redundava em arrependimento, pois “a casa”, quantas vezes, ficava sem repórter durante duas ou mais semanas. Sou um desses repórteres. Por força das intempéries atlânticas vindas do Golfo do México, fiquei retido no Corvo várias vezes, o que me permitiu familiarizar-me com toda a sua população. E, interessante, só assim consegui avaliar que a provação gerou ali um fenómeno político-social novo, um modelo incomum de sociedade onde tudo era de todos. Se a tia Maria não tinha sal, a tia Fernanda, que o tinha, trocava-o por açúcar. O Atlântico fustigava a ilha e concorria para o sistema de trocas na longínqua adversidade da pequenez ocidental europeia e a união fazia a força. A grande família corvina dava à luz todos os dias o que podemos chamar de democracia pura, ignorando, chacoteando até dos aproveitamentos políticos, dos egoísmos ilhéus, das prepotências parlamentares, dos egocentrismos dos centros de decisão. Ali presidia a lei muito própria da resistência, às vezes sobre-humana, da continuidade heroica, escrita na sensatez e na generosidade, na coragem e na humanidade, que foram garantes de sobrevivência… todos entregues ao destino do mar. Os centralismos ali passam ao lado. Pouco importam. Interessa aos corvinos, tão-somente, conviver pacificamente com o oceano e as intempéries, a corrente e o vento gélido do canal, o isolamento forçado tantas vezes ( esta ilha só teve o seu primeiro médico residente há trinta e quatro anos ) e viver uns para os outros numa cooperação quase plena. O Corvo é, na verdade, um pequeno grande mundo à parte, porquanto um exemplo de saber estar diariamente em comunhão com a pequenez. A ilha mais pequena de Portugal não é frágil, é, manifestamente, um viveiro de virtudes.
Esta ilha, descoberta por Diogo de Teive e seu filho na sua segunda viagem à Terra Nova em janeiro de 1452, vem nos mapas genoveses de meados do século XIV como Insula Corvi Marini (Ilha do Corvo Marinho).
A ilha do Corvo foi sempre liberal, sobretudo a partir da ofensiva, em 1831, do sétimo conde de Vila Flor, durante a Guerra Civil Portuguesa, reconhecendo a pequenina ilha o governo liberal. A povoação seria elevada a vila em junho de 1832 por D. Pedro IV, determinando o decreto-lei que se chamasse Vila do Corvo, e não Vila Nova do Corvo, como é habitual ouvir-se chamar.
Houve três tentativas de povoamento desta ilha, nenhuma delas surtindo bons efeitos. A primeira no início do século XVI, empreendida pelo terceirense Antão Vaz de Azevedo, que levou consigo trinta pessoas que pouco tempo depois a abandonaram; a segunda, vinda de povoadores, também da ilha Terceira, então liderados pelos irmãos Barcelos, mas que acabou também por não trazer resultados; mais tarde, em 1452, o Capitão do Donatário Gonçalo de Sousa fez uma terceira tentativa mandando para lá escravos oriundos da ilha cabo-verdiana de Santo Antão, que também redundou em fracasso. Foi só a quarta arremetida, desta vez de colonos florentinos, que resultou. Decidiram fixar-se definitivamente na ilha onde criaram gado e praticaram a agricultura, a pastorícia e a pesca e o Corvo passou a ser uma ilha açoriana definitivamente colonizada.
Tal como todas as outras ilhas açorianas, o Corvo foi outra ilha bastante saqueada por piratas. Reza a história que em resposta a duas tentativas de desembarque de piratas da Bavária, duzentos corvinos juntaram-se e repeliram os invasores, que acabaram por desistir e fazer-se ao mar com numerosas baixas infligidas pelos corajosos ilhéus.
A coragem dos corvinos veio também ao de cima no século XVIII quando navios baleeiros norte-americanos se dirigiam à ilha para os recrutar para tripulantes, mas sobretudo para arpoadores, pois até na América do Norte era demais conhecida a sua bravura.
O Corvo lá está no seu paralelo 39. Se lá for, verá ainda a maioria das casas com as chaves nas portas, de dia e de noite. Ali a confiança é geral e o respeito também.
O grito do milhafre que voa o nevoeiro, o brado do gueixo na montanha, a longitude da ilha, o saber-se gente ali a nascer, a viver e a morrer, naquela descomunal pequenez, entre mar e céu, gente que, embora vergastada pelas medonhas borrascas de oeste, persiste grata à natureza e à vida, é uma experiência nova e estranha, até para outro ilhéu.
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