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Por muito que agora não seja simpático (nem, convenhamos, particularmente sensato) fazê-lo, ouso começar por lembrar algo que subitamente todos temos feito por esquecer. Até há quinze dias poucos teriam dúvidas de que Portugal era governado por um primeiro-ministro sério, com convicções e – ça va sans dire – muita coragem. Não sei se esta quase unanimidade se manterá mas, pelo meu lado, até porque a idade me vai ensinando a não misturar avaliações políticas com avaliações de caráter, não tenho razões para pensar que o que ontem era verdade, deixou hoje de sê-lo. Em condições normais, tudo isto seriam, portanto, boas notícias. Porque é obviamente muito importante que os políticos tenham norte e que a política se faça de convicções. Mas também porque Portugal já sofreu que chegue nas mãos de governantes pouco sérios (é um eufemismo), com poucas convicções genuínas e/ou sem nenhuma coragem.
Então como explicar tanto clamor, tanto ruído, tanta e tão genuína indignação? Como pode um Governo genericamente bem intencionado levantar um coro de protestos tão impressionante e tão comovente como o que ecoou por todo o País no passado sábado? Pois vejam lá que o paradoxo é só aparente. E a questão – gravíssima em si mesma – não é tanto o facto de a ideia de pôr os trabalhadores a financiar os patrões que o primeiro-ministro apresentou ao País ser uma ideia errada, desnecessária, contraproducente, insensata e profundamente injusta. A questão, a verdadeira questão que faz deste erro um erro potencialmente dramático é que – e os portugueses intuem-no – não há nada mais perigoso do que uma ideia errada na cabeça de uma pessoa séria, verdadeiramente convicta da sua inerente bondade, e evidentemente corajosa. E não há nada mais explosivo do que uma ideia destas num ambiente de generalizado medo e em que a esperança é palavra que saiu do nosso léxico comum. A história está recheada de tragédias que brotaram de incendiárias combinações destas.
Aqui chegados e se me desculparem pelo exercício pedante da autocitação, relembro o que aqui escrevi há uns meses: “Cresce em mim – lá está – uma incómoda dúvida, uma aflitiva sensação. A ideia de que estamos perante um Governo profundamente ideológico, porventura o Governo mais ideológico dos últimos 20 anos. (…) Mas convém, se não for pedir demais, que a convicção ideológica seja suficientemente espessa, suficientemente refletida, minimamente testada para poder internalizar a dúvida, sofisticando-se. Para poder conviver com a conclusão tramada de que a realidade é sempre complexa demais para se deixar ficar, sossegadinha, arrumada em gavetas.”
Ora, é esta sensação que, de novo, verdadeiramente me aflige e angustia. É esta sensação que me faz temer que o Governo, acantonado, apertado, pressionado, criticado por um erro que é de substância e não apenas de forma, se feche ainda mais sobre si mesmo, se recolha no aconchego das suas supostas verdades, se deixe enredar na “narcótica ilusão das grandes convicções e tonitruantes certezas” e olhe cada vez mais para o País como uma choldra que o não merece.
Portugal não se pode dar ao luxo de ter agora uma crise politica. O mínimo que se exige de todos os atores políticos (oposição incluída) é, pois, a mesma serenidade, bom senso e ponderação de que os portugueses deram provas no sábado. Mas convém dizê-lo com clareza: o ónus de recuar é do Governo. A coragem de nada serve se não for ponderada pela humildade. E há momentos em que recuar, em vez de constituir uma fraqueza, pode representar a prova suprema de uma força serena. Espero, sinceramente, que o Executivo possa compreender isto.