O liberalismo tem costas largas. Tão largas que um absurdo prefixo destituído de qualquer sentido (neo) transformou todo um ideário de liberdade num insulto prêt-à-porter para intelectuais de pacotilha. Tão largas que arca com todas as responsabilidades da crise. Se fosse economista talvez tentasse, alternativamente, defender a tese de que foi a financeirização hipersofisticada da economia que veio tirar aos mercados o principal instrumento para uma autorregulação eficiente: um sistema de sinais e de formação de preços simples e transparente. Mas adiante, que não quero nadar para fora de pé. Por agora, interessa-me tentar fazer outra pergunta: será verdadeiramente liberal a receita que o triunvirato de financiadores internacionais exige aplicar aos países sob assistência?
À superfície existe, de facto, matéria para sustentar a tese. Qualquer espírito liberal acredita num Estado simultaneamente mais pequeno e mais forte, no mérito como critério norteador da justiça social, na liberdade que sempre se sobreporá à igualdade. Ou, se preferirem, na igualdade de processos por oposição à igualdade de resultados. Mas é a partir daqui que a porca torce o rabo.
Por um lado, por uma questão de forma ou de método. Porque é difícil conjugar dogmatismo e intolerância com liberalismo em estado puro. O simplismo, a falta de espessura intelectual, a ausência de dúvida metódica, a adesão absolutamente acrítica a um qualquer ideário pronto a vestir serão coisas de diligentes recém-convertidos a uma qualquer religião mas estão nos antípodas de um ideário que, sem glorificar o relativismo, faz da recusa dos dogmas um dos seus pilares fundamentais. São características de cristãos novos sem tempo nem distanciamento para moderar a embriaguez das grandes certezas, das revelações epifânicas, das construções teóricas autossuficientes. São coisa de gente sem a sageza para tolerar e internalizar o incómodo da dúvida. Talvez um dia percebam, como todos os desiludidos dos vários ismos, que não há edifício intelectual algum que possa albergar a infinita complexidade do mundo real. Talvez então se possam dizer liberais. Mas a verdade é que, por enquanto, parece só haver espaço para inabaláveis certezas.
Por outro lado, há problemas substantivos. Suprema ironia, é notória a inconsistência interna de um ideário que só mesmo à superfície pode parecer verdadeiramente liberal. Por baixo de meia dúzia de ideias feitas, repetidas de forma catatónica, a verdade é que existe um impulso messiânico de transformação cientifica da sociedade que é muito mais tributário de Platão ou de Marx do que de Locke ou dos founding fathers da democracia americana. Construir por decreto a utopia da sociedade liberal perfeita é uma contradição insanável que deve estar a deixar Hayek e a sua grown order às voltas no túmulo.
Mas tudo isto seria apenas matéria para inquietar académicos não fosse a circunstância de os mestres desta contraditória aventura ideológica parecerem nem sequer verdadeiramente saber onde querem aportar a sua nau, depois da terraplanagem social em que estão empenhados. É que, monumental maçada, cresce em mim a inquietante convicção de que ninguém verdadeiramente sabe o que plantar sobre os escombros de um Portugal ou de uma Europa do Sul que já vão sendo. Para além de umas ideias vagas sobre mudanças geracionais (cá na terra, o fascínio pela juventude e o desprezo pelos nossos “mais velhos” chega, aliás, a ser indecoroso); para além de um culto animista do empreendedorismo e do autoemprego; para além de uma antipatia indisfarçável em relação a todo o tipo de elites e de poderes estabelecidos, a verdade é que pouco mais fica de alguma coisa que se pareça minimamente a um projecto para uma Europa do Sul pós-troika.
Veremos onde aporta esta nau de loucos convenientemente mascarados de liberais.