Comecemos por uma óbvia declaração de interesses. Sou amigo de Francisco Pinto Balsemão e de Ricardo Costa, duas das vítimas da abjeta espionagem de Jorge Silva Carvalho. Como tal, mas como também deveria parecer óbvio a qualquer cidadão medianamente formado, toda a delirante novela da devassa das suas vidas privadas me causa asco. Deem-me, pois, o desconto que entenderem, porque não faço a mínima tenção de ser impecavelmente objetivo. Mas dito isto, descansem. Nem sequer pretendo gastar muito latim com o personagem. Prefiro ater-me ao nexo profundo da farsa.
Não é a primeira vez que o Governo tenta escudar-se no escrupuloso respeito pelo formalismo da Lei para agredir o nosso mais básico sentido de justiça ou para passar, mal amanhada, uma ténue camada de verniz na própria aparência de decoro da sua ação executiva. Foi assim com o episódio trágico-cómico da licenciatura de Miguel Relvas. Foi agora assim com a espantosa generosidade institucional que o Estado tinha guardada para o seu espião pródigo, Silva Carvalho. Num e noutro caso, a ninguém interessou ocorrer (ou, o que é infinitamente mais grave, a ninguém ocorreu de facto) que o respeito formalista e burocrático pela Lei está longe de poder ser muito mais do que um requisito mínimo (e nunca suficiente) para a legitimação da ação política ou governativa. Num e noutro caso, ninguém se lembrou de tentar passar o teste dessa instância profundamente mais severa que é a ética. Ou, mais brandamente, dar ouvidos ao simples bom senso ou mesmo a esse pulsar difuso mas partilhado, que, por razões culturais, religiosas, históricas ou outras, ganha corpo no sentido de justiça coletivo de uma sociedade ou de uma nação. Num e noutro caso, por ignorância ou por má fé, o Governo mandou a substância às malvas e acantonou-se na forma. Num e noutro caso, baixou deliberadamente a fasquia da sua autoavaliação, deixou o sentido de Estado às portas da sua consciência política e, mais grave, lançou a ética às urtigas. Num e noutro caso, está-se mesmo a ver, lá arranjou maneira de passar à rasquinha.
Ora, esta cómoda opção é tão mais grotesca quanto mais se sabe que a Lei anda, de há muitos anos para cá, transformada numa paródia de si mesma e que a justiça apodrece e sufoca nos labirintos formais para que se desmandou. O que não faltam são exemplos. Há tempo demais que Isaltino Morais troca as voltas a todos os tribunais do País. Vale e Azevedo rabeou a justiça portuguesa (e inglesa, by the way) com pompa e muito estilo, durante anos a fio. Da caixa de Pandora do BPN quase só saltaram anjinhos. Do BPP nem isso. Algumas aventuras políticas na Caixa e no BCP estarão, eventualmente, ainda por contar. A história do delírio das PPP’s e, quem sabe, das privatizações a mando da troika, pode nunca vir a fazer-se. Ou seja, não só o Executivo se escapa desavergonhadamente ao tribunal da ética, como se entrega, qual Egas Moniz em versão vivaça, nas mãos da que sabe ser a militante inoperância do império da Lei.
Agora, se querem saber, e porque estamos em época pascal, o melhor é perdoar-lhes. Não sabem o que fazem. A culpa é, antes de mais, nossa. Lamento, mas é assim mesmo. Por cada vez que deixamos a indignação em casa, por cada vez que tapamos a fúria com a resignação de um encolher de ombros, por cada vez que achamos que não é nada connosco, por cada vez que não vomitamos, somos cúmplices deste processo revolucionário em curso que é o de remeter a ética, a vergonha e o decoro para o baú das tradições bolorentas da nossa vida em sociedade.
Chamem-me bota de elástico. Chamem-me Cassandra. Mas a verdade é que olho para a profunda anemia com que vamos recebendo estes desaforos e só consigo lembrar-me daquela acalmia silenciosa, plúmbea, quase mágica, com que, no mar, se anunciam as grandes borrascas que estão para vir. E só quem nunca andou no mar não se retesa com respeitinho.