O círculo de contestação ao Governo fechou-se, com o documento conjunto das confederações empresariais a exigir-lhe a coragem de assumir que tudo falhou e a “ousadia” de não insistir numa receita que não dá provas e nos está a levar perigosamente para um beco sem saída. A longa recessão que Portugal atravessa e a ausência de medidas que invertam este ciclo, com promessas de estímulo à economia que nunca chegam a sair do discurso (de parte) do Governo, não poderia conduzir a conclusão diferente daquela a que os patrões acabam de chegar. Mas o tom do documento e a atitude que traduz são surpreendentes, sobretudo porque deixam os patrões lado a lado com os sindicatos, isolando o Governo na Concertação Social.
A contestação começa a ser uma séria preocupação. Sobretudo porque o sistema está sem válvula de escape. Não são só o Governo e a maioria que não respondem aos sinais de descontentamento. A Presidência faz rigorosamente a mesma coisa. Cavaco Silva costuma ser uma pessoa ponderada, prudente, avessa a grandes agitações. Essa tem sido, aliás, a marca predominante de atuação de todos os Presidentes desta III República. Mas ela não se pode traduzir sempre, sejam quais forem as circunstâncias, na mesma discrição e negociação de bastidores. A chamada “magistratura de influência” não pode ser aplicada, em todas as circunstâncias, da mesma forma “suave”, sob pena de a Presidência fazer pontes com todos exceto com o povo que representa e deve proteger.
Dada a proximidade política que existe entre Governo e Presidência, Cavaco Silva podia facilmente dar sinais inequívocos de que não se esquece das dificuldades dos portugueses sem que tal causasse atritos institucionais de maior. Mas não é isso, de todo em todo, o que se está a passar, como se viu quando autorizou o pagamento dos subsídios de férias aos funcionários públicos apenas no final do ano.
O primeiro-ministro pode queixar-se de muito do que aconteceu nestes dois anos e que penalizou fortemente o crédito de que gozava inicialmente junto da opinião pública e dos principais agentes económicos. A quem sinta alguma dificuldade em conferir-lhe essa margem de benefício, lembramos a troca de acusações entre responsáveis da União Europeia e membros do FMI para perceber que algo de muito errado se verificou nos vários países europeus intervencionados por culpa da troika, que não soube gerir as crises em países que não só não têm moeda própria como ficaram limitados em vários outros campos da sua soberania.
Mas, em cima disto, o Governo português não hesitou em desenhar a sua própria agenda de “reestruturação” do País, para atingir um patamar diferente de competitividade da economia, com menos despesa pública e menor dependência do consumo interno, com empresas mais competitivas e maior capacidade exportadora. E, com esse fim, aplicou um conjunto de reformas ainda mais exagerado que o defendido pela troika, uma receita que previa o empobrecimento deliberado da generalidade da população como condição indispensável ao regresso do País a padrões de crescimento saudáveis. Só quem chegados a este ponto, descobrimos que estamos encravados no pior dos mundos, numa economia que pretendeu ser liberal mas que é sufocada por uma carga fiscal contranatura e de tal forma superdimensionada que mata qualquer capacidade de sucesso empresarial e de crescimento económico, já para não falar do cumprimento dos nossos compromissos externos, objetivo cada vez mais difícil.
Mas o pior de tudo é mesmo a incapacidade de gestão política revelada pelo Governo. Aos erros ideológicos e preconceituosos da troika, aos seus próprios fracassos e preconceitos, às inevitáveis (e enormes) dificuldades que sempre teria para administrar a República numa fase tão difícil, o Governo foi, e continua a ser, completamente incapaz de gerir a sua própria coligação, o que se traduz, depois, numa imagem de grande incompetência e em falta de confiança no futuro. Completamente incapaz, também, de encontrar pontos de equilíbrio na sua relação com o PS, partido que conseguiu alienar em definitivo, Passos Coelho cometeu, nesta matéria, os mesmíssimos erros, e o mesmo pecado de arrogância, que tinha apontado a Sócrates. O Governo foi e é, além disso, incapaz de gerir a sua relação com todos os parceiros sociais, com aqueles que, já se sabia e era normal que assim acontecesse, mas também com os outros, com as estruturas patronais que teoricamente teriam a ganhar com a linha política que defende. O Governo foi e continua a ser, por fim, incapaz de falar ao País, de conseguir explicar a lógica das suas medidas e a necessidade das reformas que preconiza. De tal forma que, hoje, provavelmente, já não tem a quem “vender” os seus argumentos.
Pior do que pobre, o País vê-se sem esperança. E sem quem o represente. E é neste momento que olhamos para o Brasil e para a revolta civil que abalou as suas cidades. Já faltou mais para ouvirmos cantar o Tanto Mar, de Chico Buarque, nas ruas de Lisboa ou do Porto.