Comissão Europeia e FMI animam-se numa troca de galhardetes em torno dos chamados “multiplicadores orçamentais”, com a primeira a considerar que a cada euro de austeridade não corresponde mais do que 0,70 euros de perda de produção de riqueza, enquanto os segundos garantem que cada euro de aperto da economia se traduz numa perda de 1,50 a 1,70 euros. Subjacente à discussão técnica está o nível de pressão que deve ser aplicado com as medidas de austeridade económica e o ponto a partir do qual se entra numa política recessiva autodestrutiva. E é neste ponto em que nos encontramos, entre o “dobrar” a crise e o cair de joelhos.
Cavaco Silva, na sua mensagem de final de ano, fez um discurso que (des)agradou a gregos e a troianos. É, de facto, difícil fazer um discurso positivo e mobilizador, ao fim de tantos anos de crise, e de crise cada vez mais profunda. E também é difícil fazer valer um discurso equilibrado e razoável, quando o que as pessoas pretendem de Belém, consoante o posicionamento político de cada um, é um sinal de apoio ou de recusa, direto e linear, a esta política de consolidação orçamental “custe o que custar”.
Mas as coisas não são simples nem lineares. São, muitas vezes, um problema de pormenor. E, no nosso caso, o pormenor poderá estar mesmo, e apenas, naquele “custe o que custar”.
O Presidente alertou para a urgência, incontornável, de estimular a atividade económica, que está agonizante, de combater os níveis alarmantes de desemprego e de olhar com a devida atenção para os sinais, cada vez mais evidentes, de pobreza aguda, de Norte a Sul do País. Mas, ao mesmo tempo, também não apontou qualquer caminho alternativo às grandes linhas seguidas pelo Governo, de austeridade e consolidação das contas públicas. E o mesmo se pode dizer das últimas intervenções de Durão Barroso, em que muita gente leu sinais de oposição ao caminho de Passos Coelho, quando, na realidade, a par das mesmas preocupações com o desemprego e a falta de crescimento, o presidente da Comissão deu claros sinais de apoio ao esforço de consolidação orçamental, esperando até que ele não abrande em resultado dos sinais positivos que têm chegado do mercado financeiro.
O problema principal da política deste Governo não está, contudo, nas grandes linhas, que nem Durão Barroso nem Cavaco Silva contestam. E o esforço de adaptar despesa e receita – apesar de esta receita não estar a ser a melhor – começa a ter a sua compensação, como o demonstra a evolução da taxa de juro da dívida pública portuguesa, que já recuou para níveis inferiores aos existentes nos tempos que antecederam a entrada da troika em Portugal, traduzindo o regresso de alguma confiança internacional na nossa economia.
O problema desta política é que o Governo parece fazer sempre questão de acrescentar uma última gota de água àquilo que já é doloroso e dificilmente suportável, reincidindo numa insensibilidade política verdadeiramente incompreensível. O problema não está nas linhas gerais, está nos acrescentos, nos excessos, nos toques e tiques de liberalismo “a mais”.
“A mais”, porque insensível e insensato, numa altura de tão grande pressão sobre as empresas e as famílias. Porque descaracterizador das próprias matrizes ideológica dos dois partidos do Governo, o que deixa o CDS-PP permanentemente incomodado com as medidas que lhe são “impostas” num Conselho de Ministros que não controla, e o PSD fragilizado na sua coesão interna, porque grande parte dos seus militantes e dirigentes não se reconhece nessas mesmas medidas nem entende a sua necessidade. E, finalmente, “a mais” porque se revelam uma ameaça crescente à paz social e ao consenso alargado que existe (existia?) em Portugal sobre a “bondade” deste plano de resgate promovido pela troika.
A solução de financiamento defendida para a redução da TSU é o exemplo acabado da falta de senso político do Governo e marca o início do seu divórcio da sociedade civil. A hostilização do PS, e desta liderança socialista, foi um verdadeiro atentado ao interesse nacional. Uma eventual rutura com a UGT, desta vez com a provocação gratuita de nova redução das indemnizações em caso de despedimento, será uma verdadeira catástrofe.
A verdade é que a paz e o consenso sociais são tão importantes para conquistar a confiança dos mercados financeiros quanto o é a consolidação orçamental e a capacidade de honrar compromissos. Mas, mais que isso, é também um valor essencial para garantir o investimento empresarial, nacional ou estrangeiro. E é lamentável concluir que o Governo não consegue perceber que a confiança dos mercados nunca se traduzirá no passo seguinte, em investimento e em crescimento, enquanto existir uma ameaça iminente de grave crise política e social.
O Governo tem errado nas suas previsões macroeconómicas, muitas vezes por subestimar a violência das medidas que adota. É uma falha grave, porque resulta de algum autismo social. Mas não é uma falha capital. Já a destruição sistemática da estabilidade política e social não só não tem justificação como não merece perdão.