O Parlamento aprovou o Orçamento do Estado para 2014, merecendo os votos favoráveis que se adivinhavam dentro do hemiciclo e o barulho que se esperava do lado de fora das suas portas. E com ele chega nova onda de austeridade, a alimentar o discurso e as ações de rua contra a política mais antipopular desde o 25 de Abril.
Esta onda de austeridade parece não ter fim. Mesmo com o Governo a apregoar o início de um novo ciclo, e as estatísticas a darem-nos alguns sinais de que algo pode estar a mudar na economia, não há nada que tenha mais força do que a aprovação de uma nova medida restritiva, de um novo corte nas pensões, nas reformas ou nos salários, ou o anúncio de que a carga fiscal continuará, em regime de exceção, a atingir níveis incomportáveis para numerosas famílias e empresas. Não há retoma, para mais, anémica, que sobreviva a tanta má notícia junta.
O ambiente é claramente de fim de festa. As críticas ao Tribunal Constitucional, que noutra ocasião nem mereceriam observação especial, são classificadas como “pressões intoleráveis” em democracia. As críticas de Mário Soares ao Presidente da República e ao primeiro-ministro são vistas como autênticos rastilhos que ameaçam fazer explodir este grande barril de pólvora. Embora toda a gente saiba já como é Mário Soares, partilho da opinião daqueles que acham que ele, por tudo aquilo que simboliza, foi longe demais. Mas, é preciso dizê-lo também, fossem outras as circunstâncias, o “tom” das suas últimas intervenções não teria merecido mais do que uma simples censura, acompanhada da nota de que este género de intervenções cai mal numa figura que pode representar muito mais para muito mais gente.
Mas as coisas são o que são. Na última segunda-feira, 25, os polícias-manifestantes ocuparam o terreno “sagrado” da escadaria da Assembleia da República, levando à demissão do comandante nacional da PSP. Um dia depois, enquanto a CGTP se manifestava, ruidosamente, frente ao Parlamento, contra a aprovação do Orçamento, vários ministérios foram “ocupados” por outros sindicalistas: os das Finanças, da Economia, do Ambiente e da Saúde. Uma movimentação que levou ao reforço policial, por prevenção, de outros dois ministérios, o da Educação e o da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social. Numa penada, passámos a ter o Presidente, o chefe do Governo, o Tribunal Constitucional, o Parlamento e mais de metade do Governo sob uma qualquer forma de pressão que, ora à esquerda ora à direita, é classificada sem hesitações como “ilegítima” e “intolerável” em democracia…
No entanto, não são as críticas ao Tribunal Constitucional, ao Presidente, ao primeiro-ministro ou a Mário Soares que me incomodam. Nem são tão-pouco as matérias que são alvo de decisões de chumbo, ou não chumbo, por inconstitucionalidade, que me indignam. Como não são os cercos ao Parlamento, as ocupações de ministérios ou os frente-a-frente das forças de segurança que me assustam.
Tudo isto é, de alguma forma, preocupante, porque nos mostra que a nossa democracia não está a saber resolver os seus difíceis problemas. Mas não é nada disto que questiona o nosso regime democrático.
O que está a levar ao limite a nossa sociedade é a pressão que está a ser colocada sobre quem menos voz tem para defender os seus interesses. A maioria dos reformados e pensionistas que não têm estruturas sindicais que os defendam. Os muitos desempregados que chegaram ao fim dos seus limitados subsídios de desemprego. Os beneficiários de pensões de viuvez e de sobrevivência que, apesar de já apenas terem dinheiro para sobreviver, continuam a ser oficialmente “ricos” à luz do discurso pragmático de quem tem de controlar o Orçamento. Os muitos jovens que nem conseguem sequer saber o que é estar empregado. E, por fim, todos aqueles, e que são cada vez mais, que vivem hoje debaixo de pontes ou sob a proteção de uma qualquer associação de natureza social.
Portugal está a cortar milhões em apoios sociais, lançando todos os anos dezenas de milhares de pessoas nas teias da pobreza e da exclusão. Para estes não há Tribunal Constitucional, não há Presidente, não há Parlamento, não há oposição, não existem sindicatos nem manifestações e há cada vez menos Estado. É aqui, na simples existência deste enorme exército que perdeu os seus direitos de cidadania, que reside a verdadeira ameaça à democracia. Podem nunca vir a manifestar-se, mas estão lá, são uma realidade com que compactuamos, da qual desviamos os olhos todos os dias. E de que todos devemos ter vergonha. Isto não é digno de uma democracia.