1. A um mês das autárquicas, e a poucos dias da decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a limitação de mandatos, sinto-me em consciência obrigado a voltar a um tema que aqui tratei a primeira vez a 9/2/2012 e a que voltei a 14/2/2013. Não vou repetir o que então escrevi. Mas voltarei a transcrever a lei em análise, o que nunca é feito pelos que, desejando que ela não diga o que diz, se derramam em considerações laterais, algumas “técnico-jurídicas”, para esconder, ladear ou falsear a clareza meridiana do seu texto.
Ao que isto tem de deletério no caso concreto, acrescenta uma “ideia” muito nociva e perigosa para a democracia e a Justiça: a de que as leis não são feitas para ser lidas e compreendidas pelos cidadãos comuns a que se destinam, antes para ser “interpretadas” por iluminados que podem sustentar, e impor, que elas não dizem o que os ditos cidadãos nelas leem mas outra coisa! E isto mesmo quando, como agora acontece, se trate de matéria muito simples e clara, que não envolve conceitos ou conhecimentos especiais.
2. Está em causa saber se presidentes de Câmara e de Juntas de Freguesia que já cumpriram três mandatos consecutivos podem continuar a sê-lo noutra autarquia. O principal argumento dos defensores dessa possibilidade é que a lei suscita dúvidas, e, assim, nos termos constitucionais, deve-se decidir pela não limitação de direitos. Ou seja: a limitação seria só territorial e não funcional.
O que diz, então, a lei? “O presidente de Câmara Municipal e o presidente de Junta de Freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos.” E, para o que interessa, ponto final. Trata-se, de toda a evidência, para quem sabe ler e lê o que está escrito e não o que deseja estivesse, de uma limitação absoluta. Não se faz qualquer distinção entre função e território: se se quisesse fazer, era imperioso – e simplicíssimo… – acrescentar, a “três mandatos consecutivos”, “na mesma autarquia”.
Nem se pode argumentar, com o mínimo respeito pela língua portuguesa e pela lógica, que também não está escrito “na mesma ou em diferente autarquia”. Porque este acrescento nada acrescentaria, seria pleonástico, e por isso contrário a elementares regras da técnica legislativa.
3. Mas não devem as leis ser interpretadas também numa perspetiva teleológica, atendendo aos objetivos que visam, os valores e princípios que lhes estão subjacentes? Deve, isso é fundamental. E, no caso em apreço, se a mera limitação territorial pode cumprir um dos seus objetivos, por os eleitores passarem a ser outros, não cumpre outros, como os atinentes ao combate à teia de interesses ou mesmo corrupção que com o tempo se vai, ou pode ir, formando, ao clientelismo, à desejável renovação política, etc. Assim, mesmo sob este aspeto, nada se opõe à adequada (única) leitura da lei: pelo contrário, reforça-a. (Por outro lado, não tem fundamento invocar, como impondo tal leitura, o n.° 1 do art.° 118.° da Constituição, que impede o exercício “a título vitalício de qualquer cargo”).
4. Voltando atrás, também a experiência mostra que quando surgem grandes teorias e elucubrações para “interpretar” uma lei simples, o que se visa é torcê-la para lhe dar um sentido que não tem. E que certas opiniões de pessoas em teoria muito “abalizadas” são irrelevantes. Porque como disse uma vez, com tanta razão como graça, um grande advogado, Azeredo Perdigão, “pareceres que são de capelo mas não são de borla não valem nada”. E o não ser de borla tanto se pode referir a dinheiro como, aqui, a interesses partidários e/ou outros. Estou crente que o TC não se deixará influenciar por isso nem intimidar pela pressão das circunstâncias, mormente da política do “facto consumado” seguida pelo PSD ao (man)ter como candidatos, em Lisboa, Porto, Sintra, Guarda, etc., autarcas abrangidos pela referida proibição.
5. Espécie de caricatura de tudo isto é o que se passa em muitas freguesias. Sei de um caso, por exemplo, em que à da sede do concelho se juntaram, na “união”, mais duas: os presidentes de todas, com pelo menos três mandatos sucessivos, são de novo (re)candidatos, aparecendo juntos num cartaz, com o presidente da sede do concelho a recandidatar-se ao cargo… Quem poderá patrocinar esta fraude à letra e ao espírito da lei?