1. Quando, em 2008, a bolha imobiliária americana rebentou e o mundo ficou à beira do colapso do sistema financeiro, cedo se percebeu que o problema não era passageiro e que rapidamente alastraria a outros setores da economia. Endividadas por muitos anos de crédito fácil e barato, as empresas não demoraram a pôr em prática planos de ajustamento à nova situação. De início, cortaram nas “gorduras”, depois congelaram salários, a seguir vieram os despedimentos, e, quando tudo isto não bastou, muitas reduziram os salários, deixaram de pagar subsídios e, em inúmeros casos, acabaram por fechar as portas, arrastando centenas de milhares de trabalhadores para o desemprego. Com sangue, suor e muitas, muitas lágrimas de desespero, o setor privado tem estado a pagar a sua fatura. Dele saíram praticamente todos os 800 mil portugueses que não têm emprego. Como se esta fatalidade não fosse já um inferno, com famílias inteiras a sentirem a humilhação de não poderem honrar os seus compromissos ou impossibilitadas de acudirem às necessidades dos seus dependentes mais frágeis, eis que leis iníquas conseguiram aumentar ainda mais o seu sofrimento. Veja-se a diminuição drástica do montante e da duração do subsídio de desemprego para se perceber do que falo.
Entretanto, o setor público vivia à tripa forra. Investimentos em obras megalómanas, aumentos salariais, negócios desastrosos e propaganda farta ajudaram a atirar o défice do Estado para níveis estratosféricos. Depois, veio a troika e a história é conhecida. Houve cortes em salários e pensões dos funcionários públicos, mas não é isso o essencial. O essencial é definir o Estado que estamos dispostos a pagar e agir em conformidade. O que não é possível, é manter uma máquina gigantesca que ainda não percebeu que o patrão está falido e não tem dinheiro para o manter, mas que, apesar disso, é incapaz de aceitar reformas. Da Saúde à Justiça, das forças de segurança à Educação, dos transportes ao chamado poder local qualquer reforma promovida por qualquer Governo é “inaceitável”, segundo as corporações, os sindicatos e os lobbies políticos. A tal ponto que, nas autarquias, chegou-se ao desplante de aumentar o número de funcionários, quando o objetivo é reduzi-los. É caso para dizer que isto, sim, é totalmente inaceitável.
O brutal ajustamento do setor privado não tem sido nem de perto nem de longe acompanhado por parte do setor público, que, no essencial, continua a manter os seus direitos. Na segurança do emprego, na proteção da saúde, na média de salários e pensões… Mas não desesperem os desempregados, os desvalidos, os que têm remunerações em atraso, os que podem ficar sem teto, pois há um farol de esperança no horizonte: o juiz Rui Moura Ramos. Porque a equidade é uma causa sem dono, no nosso país e porque, como demonstrou na sua longa e justificativa entrevista, é uma autoridade no tema, talvez agora, que está de saída do cargo, o senhor presidente do Tribunal Constitucional venha a dedicar-se à política com programa simples – fazer com que as leis sejam mesmo iguais para todos. Com sorte, ainda levamos como bónus a taxação do capital.
2. O caso Miguel Relvas já passou para a fase do anedotário nacional, o que significa que ninguém respeita o ministro. Assim sendo, não está a fazer nada no Governo a não ser distrair os portugueses do que é essencial, a diminuir a capacidade de ação da equipa governamental e a ajudar (ainda mais) ao desgaste do Executivo. O que não se percebe é a atitude do primeiro-ministro para quem o seu amigo Miguel parece ser mais importante do que tudo o resto.