Conhecemo-nos faz muitos anos. Estava internado no hospital com um diagnóstico de esquizofrenia, ouvia vozes, passeava em solilóquios no pátio, nalgumas alturas era agressivo, noutras pedinchava cigarros, quase ninguém da família se interessava por ele ou o visitava, passou anos na enfermaria, davamo-nos bem. Às vezes, quando estava mais violento, sentava-o no meu colo. Começava por oferecer porrada, acabava abraçado a mim, a chorar. Depois secava as lágrimas, levantava-se e punha-se na alheta:
– Você não é má pessoa, doutor
garantia ele
– Você não é má pessoa.
Ontem encontrei-o na rua. Um frio do caraças e ele vestido de trapos, com um barrete esquisitíssimo na cabeça. Eram duas e meia da tarde e não tinha comido nada:
– Ainda hoje não comi nada, doutor
de maneira que ficou à espera que eu acabasse o cigarro para se banquetear com a beata porque
– Uma beata conforta, doutor, você não imagina como uma beata conforta.
Dorme no degrau de uma igreja
(eu
– E a almofada?
ele
– Não preciso, ponho o cotovelo por baixo)
com um cobertor que traz num saco de pano a desfazer-se e que os colegas do degrau volta e meia lhe roubam. Alimenta-se de esmolas, não toma banho, passeia pelas ruas
(- Por acaso hoje está fresquinho)
não se queixa de nada. É daquelas pessoas que tem uma sobrancelha só, mesmo por cima do nariz os pêlos continuam, cheira mal que tresanda. As vozes, na sua cabeça, vão e vêm:
– Não me chateiam muito, não necessito de bater em ninguém
e, entretanto, começa a chover e a gente os dois a molharmo-nos. Recuamos para debaixo de uma varanda. Declara
– No hospital era porreiro, comida quente, cama
e lá me vieram à cabeça os plátanos, a miséria daquilo, uma inscrição torta num muro: Love My Life. Sempre que a olhava passava-me. Love My Life. E gatos vadios, e pombos. Love My Life, porra. Ele para mim
– Uma coisa é certa, doutor, não sou infeliz.
Não sorri mas não é infeliz. Também não chora. Anda pela cidade
– Não tomo injeções nem comprimidos mas não faço mal a ninguém
até ao dia em que as vozes lhe dêem uma ordem qualquer
– Quero isto, quero aquilo
e ele se torne violento de novo. Meto a mão no bolso para lhe entregar dinheiro, ele recusa, com ar severo
– Basta-me a sua amizade, doutor
acrescenta
– Os amigos são para outras coisas
fixa-me com severidade, com censura.
Respondo
– Quais outras coisas, parvalhão?
e amacia um bocado:
– Você sabe
murmura ele
– Você sabe.
E, de viés:
– Neste momento você topa tudo o que eu penso
e não topo nada do que ele pensa porque ele não está a pensar seja o que for. Mal terminei a frase e já está a atirar-me
– Ora vê?
a sublinhar
– Ora vê como topou logo que não penso?
Experimento
– E eu estou a pensar em quê?
a pensar na frase escrita na parede, Love My Life, que sempre me deu volta à tripa. Fica a meditar um minuto, olha-me, deixa de olhar-me, olha-me de novo
– Sei lá, você é doutor, tem poderes. E escreve livros, não é?
Junta à pergunta uma promessa solene
– Para a semana compro um porque até aos quinze anos andei a estudar.
Lembro-me mal da história da vida dele, tenho ideia da mãe, de tempos a tempos, com um cestinho de fruta. Uma senhora pobre, que pedia desculpa de existir:
– Sou viúva.
Eu
– A mãezinha?
Pela primeira vez abriu-se:
– Está bem, doutor
a medir se avaliou em condições: acha que sim, abre-se mais:
– Desde há três anos no Alto de São João. Pelo menos quando a gente morre deixam de chatear-nos a molécula.
E aqui apareceu-me Voltaire na agonia. O padre insistia com ele para repudiar Satanás e Voltaire argumentou
– Nesta altura não me convém arranjar inimigos
mas talvez Satanás não chateie a molécula à viúva do cestinho da fruta e se reserve para moléculas de maior calibre. De qualquer maneira o filho anda a pau:
– Mais para o verão dou lá um salto para uma conversinha
ou seja ela a insistir
– Come um pêssego
e ele
– Não estou em maré de pêssegos, senhora, o que me apetece são tremoços.
Disso recordo-me: quase todos os dias pedia tremoços ao enfermeiro, que era o nome que ele utilizava para os comprimidos:
– Se você fosse homem entregava-me uma mão cheia de tremoços para acalmar as ideias
e, de quando em quando, lá lhe entregavam um tremoço ou outro. Passada meia hora alongava-se no chão do pátio, tranquilo
– É cá uma paz que eu sinto
de olhos fechados e braços abertos, crucificado na terra:
– Cá uma paz, doutor.
Mas estamos de pé numa rua de bairro, chove, as árvores abanam, o vento mete-se pescoço abaixo, sob a gola. Estende-me a mão
– Vou indo
e lá vai indo com o saco, metido nos seus trapos confusos. Vira à direita, na esquina onde não há um prédio, há um pedaço de muro antigo e parece-me que escrito no muro, em maiúsculas muito maiores do que no hospital, Love My Life. Uma ocasião uma jornalista alemã veio entrevistar-me. Não tinha que ver com doenças, tinha que ver com livros. E foi estranhíssimo: assim que reparou nos internados, assim que leu a frase, desatou a chorar. Era uma mulher de cinquenta ou sessenta anos e desatou a chorar.
– Perdoe, perdoe
soluçava ela. Love My Life apenas. Porque seria?