Esta crónica é dedicada ao meu querido Frei Bento Domingues, Homem de Deus e dos homens.
Quando eu andava no liceu e era mau aluno a minha avó prometia a Nossa Senhora levar-me a Fátima se eu passasse o ano. Devido à intercessão dos Pastorinhos, decerto muito ouvidos por Deus em matérias escolares, eu lá me salvava rés vés Campo de Ourique, graças à influência celeste dos ditos Pastorinhos e também, em menor grau, de um amigo do meu avô, professor no meu liceu, que coadjuvava as Doces Crianças mediante uns lamirés às pessoas certas
– Tem paciência, pá, dá lá um jeito ao rapaz
os mestres, sensíveis ao Divino, davam o jeito transformando os oitos em doses, sob o patrocínio atento, junto à túnica do Senhor, dos Excelsos Meninos, que decerto metiam
(quem discute isso?)
a sua colherada providencial, Deus acabava por ceder, por bondade ou cansaço
– Pronto, ele que não chumbe, larguem-me
e a minha avó, em lugar de ir comigo, em peregrinação, à casa do amigo do meu avô, que permanecia numa sombra discreta, pronto a actuar no ano seguinte
– Se os Pastorinhos estiverem de acordo a coisa arranja-se
metia-se numa camioneta comigo e transportava-me, durante horas que me pareciam intermináveis, ao Lugar Sagrado, a fim de agradecer convenientemente o milagre.
(Ainda hoje, homem de pouca Fé que sou, me surgem dúvidas acerca do papel dos Abençoados Infantes na minha carreira de estudante.)
E lá entrava eu em Fátima, que sempre se me afigurou
(serei um mal agradecido?)
um lugar lúgubre, cheio de gente de joelhos a arrastar-se, substituindo as infelicidades que os trouxeram ali por catástrofes nas rótulas, pastoreadas por freiras de fé inoxidável e senhoras voluntárias de crença à prova de bala. Não entendia tanta gratidão combinada com tanta esfoladela, não entendia tanta muleta, à beira de um ataque cardíaco, reconhecidas por graças confusas, o marido que deixou de beber, o adolescente, com problemas nos olhos, que agora via mosquitos na outra banda, padecentes em macas, a quem os hospitais desenganaram, mirando-me a meia pálpebra, já do outro lado do Mundo, no qual entrariam decerto, consolados por um bispo com pressa, no caminho do regresso, cheios de corda, nos sapatos da alma, a caminho do Céu.
Eu era uma criança e aquilo tudo pasmava-me, ou seja uma mistura de feira de província, com imagens da Virgem em vez de leitões e caçarolas de barro e fregueses escalavrados a comerem bifanas nas tendas de industriais da restauração, a quem as Virtudes Teologais ajudavam a amaciar financeiramente a existência. Perguntava à minha avó
– Tem a certeza que Deus está aqui?
e ela tinha, férrea, tenaz, inamovível, a rezar terços com um grupo de amigas igualmente férreas, tenazes, inamovíveis, jurando que Deus frequentava com agrado aquelas lamentosas paragens.
Padres de palma macia afagavam-me aprovadoramente o queixo
– De pequenino é que se torce o pepino
quando a mim se me afigurava torcerem-no no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, enviando a minha minúscula alma para um Inferno decerto mais incandescente mas menos terrível de dor inútil e sofrimento vão. A minha avó, de quem eu gostava muito, triunfava de júbilo perante tanta vela, tanta medalhinha, tanta compressa, tanta perna ligada, tanto rastejar esperançoso. Assinava o jornal Novidades, diário católico que nunca vi fora da cinta, o Almanaque da Sãozinha, que celebrava os feitos de uma adolescente que deu a vida em troca da conversão dos pais
(ela morreu e eles converteram-se, viva o luxo, ora toma, e dedicaram anos e anos à descrição minuciosa dos milagres da filha que, ao tomar-lhe o gosto os multiplicava às dúzias e em comparação com os quais o ressuscitar dos mortos era uma proeza ao alcance de qualquer ilusionista em baixo de forma)
e o Não Sei Quê de Santa Zita, patrona das criadas de servir, que as ensinava, com afectuosa firmeza, a obedecerem aos patrões e a não servirem a sopa com o polegar lá dentro. Eu perdoava isto tudo à minha avó e não compreendia nada, possuído da ideia esquisita que a Fé era outra coisa que nada tinha a ver com a multidão de sacerdotes que o meu avô convidava para almoçar aos sábados, um dos quais me empurrava para cantos discretos a chamar-me
– Cara de um anjo
e a enfiar-me os dedos pelos calções acima, em busca das pequenezas secretas que eu tinha por ali.
(Tanto quanto me lembro nunca as alcançou, pelo menos que eu sentisse, mas bem se esforçava apertando-me contra ele.)
E por gostar muito da minha avó, dizia eu, perdoava-lhe isto tudo e não compreendia nada, possuído da ideia esquisita que a Fé era outra coisa, a senhora viúva que levava a Sagrada Família de casa em casa, dentro de uma redoma para estadias de uma semana com flores ao pé, pequenina, magra, acho que com pouco dinheiro, que não rojava joelhos no chão, caminhava nas ruas de Benfica num passito igual e com quem eu simpatizava
(chamava-se D. Maria Salgado, nunca a esqueci)
sei lá porquê. Como era menino do coro via-a às vezes rezar sozinha na igreja quase deserta, sem bifanas, a olhar o Sacrário de frente e talvez Deus fosse aquilo, Alguém que se olha de frente numa nave gelada, duas pessoas que conversam, de igual para igual, buscando uma na outra o segredo do mundo, e o professor amigo do meu avô
(também não esqueci o seu nome, doutor Oliveira Simões)
que me sorria de um modo que me agradava, convencido que eu era um garoto que pensava noutra coisa. Aí acertou em cheio, senhor doutor. Continuo a ser um garoto que pensa noutra coisa, morrerei sem dúvida a pensar noutra coisa, espero encontrar um céu sem pastorinhos, muletas e bifanas, apenas um espaço com uma mesa a um canto, à qual possa sentar-me a escrever. Há um provérbio judeu muito antigo que me persegue há séculos: o homem pensa, Deus ri. Não imagino um Paraíso com falta de humor, não imagino dissolver-me um dia numa mentira horrível. Prefiro a descrição do escritor Júlio Dantas, que não é tão mau como os ignorantes pensam, a contar a chegada do poeta Bulhão Pato ao céu, “poisando a mão no ombro formidável de Deus e a perguntar-lhe
– Rapaz! como estás tu?”
Que adjectivo estupendo, que frase bem balançada. E é uma coisa mais ou menos desse género que penso. É pouco provável que poise a mão no ombro formidável de Deus
(não toco muito nas pessoas e há alturas em que gostava tanto)
e lhe pergunte
– Rapaz! como estás tu?
porque sou tímido. Mas, se fosse capaz de perguntar, gostaria que me respondesse
– Menos mal, filho, menos mal
e me deixasse andar onde me apetecesse porque a Sua casa, não é verdade, porque a Sua casa, e desta certeza não saio, é minha também.