De Bucareste a Constância, de automóvel, é uma viagem longa, através de grandes extensões de campos. Passam-se aldeias e aldeias, algumas vilas, casas dispersas, camponeses que caminham à beira da estrada. A certa altura um mosteiro enorme com centenas de seminaristas. O clero teve um papel importante durante o comunismo, bastantes padres foram presos, bastantes padres foram mortos. O clero, ao contrário de Portugal, não colaborou com a ditadura e muito mais gente do que aqui frequenta as igrejas. Fomos recebidos pelo bispo, um homem imponente, de longas barbas grisalhas. A certa altura disse
– Vamos rezar uma oração pelas almas eternas dos escritores falecidos.
E, na igreja lindíssima, inúmeras vozes masculinas cantaram uma oração arrepiantemente bela, que me emocionou até às lágrimas. Nunca senti Deus tão presente, tão próximo como nesse dia. As almas eternas dos escritores falecidos. Tomara eu que um dia cantassem aquilo por mim. No fim deram-me um terço que cabia no punho como uma pulseira. Pedi a um padre que o benzesse. E saí de lá com o espírito mais perto do Céu do que alguma vez o tinha sentido. Tudo ali era de uma beleza grandiosa e tranquila e a mão de Deus passeava sobre as nossas cabeças. Depois mais campos, mais estradas, mais animais a lavrarem. E Constança junto ao Mar Negro, para onde o Imperador Octávio exilou Ovídio, onde ele escreveu boa parte da sua obra e no qual morreu. Ovídio é o meu poeta favorito. Tem uma estátua dele num pedestal alto que faz lembrar um pouco a de Bocage em Setúbal. Há anos que tento traduzi-lo, de indicador no sujeito e mindinho no verbo e os meus resultados são pobres comparados com a extraordinária riqueza do original. Outro dia consegui verter para português versos seus que não me pareceram assim muito maus, embora bastante inferiores à versão original
Há lágrimas na natureza das coisas
e a tristeza do efémero toca-nos o coração
claro que isto é uma versão discutível face à polissemia da poesia de Ovídio, claro que há a presença de Calímaco embora a presença de Calímaco seja mais ou menos óbvia nos grandes latinos, em Ovídio como em Horácio ou Virgílio, mas parece-me, apesar de tudo, aceitável: com um toque de génio ficaria boa mas eu sou um prosador que mantém com a poesia uma relação imperfeita. Porém ali estava eu em Constança, na cidade onde o exilado Ovídio morreu e na qual escreveu, por exemplo, a admirável Tristeza do Exílio, sentindo a sua presença em cada pedra, em cada esquina, em cada bocadinho de ar que respirava. Estava eu e estavam dúzias de escritores um pouco de toda a parte, para um encontro internacional e a entrega do Prémio Ovídio que me deu imenso prazer receber. Voltei corrido um ano, como era da praxe, para entregar o prémio ao laureado seguinte, por acaso o meu amigo Amos Oz, que fez o mesmo com Vargas Llosa, que fez o mesmo com não sei já quem, e gostei imenso dos recitais de poesia em que os autores diziam os próprios versos, gostei de conversar com pessoas que respeitava, gostei de conhecê-los e de os ouvir falar. Diante deles sinto-me o menino que fui e que interrompia, ao meio da viagem de eléctrico para casa, de volta do liceu, a viagem para achatar o nariz na montra da cervejaria Coral, espreitando os intelectuais que ali se juntavam, achando estranhíssimo que eles comessem como eu, de faca e garfo, trocando palavras que não conseguia ouvir mas que eram, de certezas sublimes. E ficava o tempo que podia, pasmado de admiração, diante daqueles espíritos que eu considerava privilegiados e cujas conversas, infelizmente, não chegavam a mim. Eu sempre admirei e respeitei os artistas e, enquanto os olhava, repetia para mim mesmo
– Eles escrevem
maravilhado de pasmo. Claro que eu escrevia também mas não publicava nada, desgostoso com as pobres produções dos meus doze ou treze anos e não valia a pena imaginar
– Vou ser o melhor de todos
porque aquilo que me saía da caneta eram pobres patetices de criança e provavelmente seriam sempre pobres patetices de criança. Qualquer coisa, que não imagino o que fosse, obrigava-me, no entanto, a teimar. E passei vinte anos a teimar, todos os dias, até que, de repente, veio ter comigo a Memória de Elefante, após passar tempos sem fim com um romance que não me satisfazia. No fundo julgo que achava que podia ser capaz mas não sabia como. De modo que continuava e destruía, continuava e destruía, continuava e destruía. E de súbito, imagine-se, estava na cidade de Ovídio a receber o prémio com o seu nome, e perguntava-me, meio assombrado, como é que eu cheguei aqui. Ainda hoje me continuo a perguntar, assombrado, como é que eu cheguei aqui. A teimar sem descanso, penso eu, porque não há talentos, há bois que marram e marram toda a vida, duvidando sempre dos resultados. Agora já não duvido: sei quem sou. Em Constança o Dinu dizia-me
– Vão dar-te o prémio
perguntei-lhe
– Como é que sabes?
e o Dinu respondeu que tinha falado do meu trabalho, louvando-o, a dois membros do juri que lhe responderam com uma pergunta
– Porque estás tu a bater a portas abertas?
e ele descansou. Queria tanto que eu ganhasse aquele prémio, o mais importante do seu País e, palavra de honra que eu não minto, e julgo que fiquei mais satisfeito por ele do que por mim. Depois deram-me mais prémios na Roménia, doutoramentos honoris causa, essas coisas. E a alegria do Dinu enchia-me de satisfação. Quando o Zé Cardoso ganhou o prémio Pessoa telefonou-me
– É para te dar os parabéns porque ganhei um prémio
quando o Nobel que ele queria para mim não vinha telefonava ao nosso comum editor, Nelson de Matos, a dizer
– Perdemos
e é talvez a isto que se chama amizade. Dinu, que bom estarmos ambos em Constança a passear junto ao Mar Negro, em paz. Que noites tão grandes sobre a água. Que pequenos almoços tão ensonados e felizes no restaurante do hotel, Dinu, como as romenas são bonitas. Principalmente isso: como as romenas são bonitas. Amos Oz, para mim
– É a mistura do sangue latino com o sangue eslavo
e eu a dizer que sim com a cabeça, claro. A uma mistura dessas diz-se sempre que sim.
(Crónica publicada na VISÃO 1328 de 16 de agosto)