E de repente, há dez ou quinze minutos, a sensação desagradável que qualquer coisa física me vai acontecer, aqui sentado à mesa onde escrevo, no momento em que pensava como começar o livro, em que me parecia que a primeira frase estava a chegar, me descia, braço abaixo, da cabeça à mão, com palavras que só conhecerei quando se alinharem no papel, a sensação desagradável, eu que não sou hipocondríaco, que o meu corpo está a mudar, se afasta permanecendo aqui, não sinto febre, não sinto dores, não descubro nenhum sinal de alarme claro, apenas um incómodo difuso, uma agitação vaga ao longe, a sensibilidade da pele diferente, o meu corpo, estranho, a afastar-se devagarinho de mim, os meus sentidos, como explicar isto, ao mesmo tempo agudos e dispersos, as pernas familiares e estranhas, arrepios imprecisos que crescem, a voz do meu pai
– Vou morrer de pneumonia como a minha avó
antes de começar a delirar, tão agitado, acendendo e apagando, acendendo e apagando, acendendo e apagando o candeeiro da mesa de cabeceira às quatro horas da tarde,
a minha mãe aflitíssima
– O que fazemos agora?
eu de pé ao lado dele
– Vamos chamar uma ambulância
enquanto o meu pai ia falando cada vez mais alto, isto na véspera do 10 de Junho e quase ninguém em Lisboa, a minha filha Joana, sempre tão corajosa
(saiu morena, aquela)
queria fazer este livro ainda, pelo menos fazer este livro, dêem-me o tempo de fazer este livro, quero meter o mundo inteiro lá dentro, não sei quanto tempo tenho ainda, apeteciam-me muitos anos mas o corpo a faltar-me, fico sempre tão surpreendido com o resultado no papel, quando acabar esta crónica talvez consiga a primeira frase, o meu pai para a Joana e para mim
– Quem são vocês?
sem reconhecer a casa nem a gente, despenteado cheio de terror nos olhos, a tentar levantar-se e a tombar na almofada, às vezes fazíamos corridas de bicicleta e ele ganhava, nunca me apeteceu ganhar-lhe e ele odiava perder, o seu ar de triunfo
– O velho hã, o velho
tão contente, descanse que nunca será velho, pai, e os últimos anos sempre na mesma cadeira, rodeado de livros e música, a tomar notas nas margens
– Senta-te aí
comigo sentado no divã e ele já não a fumar cachimbo, a fumar cigarros, o horror dele morto na cama do hospital, de pijama ainda, muito mais sério que o costume, não sério, grave, com a biografia de Bismark, gordíssima, à cabeceira, o João não biografias, romances, contos
– Não gostas de Alice Munro pois não?
a largar o livro
– É o género de prosa que tu achas uma merda
eu
– De facto gosto mais dos Inventos e Tropelias do Serapião Tobias
e o sorriso dele, tão doente
– Devíamos ler isso outra vez
eu
– Talvez ainda o descubra numa livraria, no fundo continuamos com sete anos
a mão dele com as sardas de sempre, a maneira de me olhar de boca entreaberta, de lado
– Hã?
eu
– Só os parvos passam dos sete anos
e o seu sofrimento a custar-me, a custar-me, sem uma queixa, um lamento, a boca a repetir
– Os Inventos e Tropelias do Serapião Tobias
e eu tocar-lhe no ombro do pijama, com ganas de dizer
– Mano
e calado, a repetir para dentro
– Porquê porquê porquê?
e porque sim, porque a vida, porque nunca imaginei que acabássemos desta forma, o João
– Dá-me água
a fechar os olhos devagarinho, a tornar a abri-los, a fechá-los de novo, a sensação desagradável que qualquer coisa física me vai acontecer e, neste momento, não me rala o que vai acontecer, eu
– É estúpido mas agora lembrei-me do Mondego, da nascente do Mondego com o pai
e ele, devagarinho
– A nascente do Mondego com o pai
isto na serra, claro, isto na nossa infância, o Pedro ou o Miguel a atirarem pedrinhas à água, o João
– Acabou-se tudo não é?
como se uma lágrima, ou seja sem lágrimas, como se uma lágrima, eu para ele, a levantar-me
– Vamos fugir daqui?
pelo seu soslaio compreendi que a sua resposta era
– Sim
pelo seu soslaio compreendi que vinha comigo, não fazia mal que de pijama, magríssimo, cada um de nós com um exemplar dos Inventos e Tropelias do Serapião Tobias no sovaco, a caminho da casa onde a avó nos esperava numa das janelas de cima, com aquele sorriso de
– Já pensava que não vinham
nós que nunca lhe faltámos.
(Crónica publicada na VISÃO 1308 de 30 de março)