A minha primeira aula de Geografia, em que fiquei a conhecer a América, foi-me dada pelo meu avô Lobo Antunes. Os Lobos fugiram de Portugal no século XVII, por serem judeus, numa primeira fase para a Holanda e depois para o Brasil, onde se mantiveram até ao fim do século XIX, princípios do século XX, quando a minha bisavó casou com o meu bisavô, João de Brito Antunes, que não era judeu mas cujo pai
(já contei isso)
um camponês muito pobre da Póvoa do Lanhoso foi mandado de uma aldeia perto da Póvoa para o Brasil, com oito anos, pelo pai, a fim de tentar que a criança não acabasse à fome. Não sei como se amanhou mas acabou rico e farto de dias com a borracha do Amazonas. Ao meu avô, seu neto
(há um retrato dele, a andar de triciclo na fazenda da Nazaré, perto de Belém do Pará, e foi ele que, era eu menino, me explicou a geografia da América por intermédio dos nomes de cidades e países, através de uma mnemónica) que não sei quem
(um pai, um tio)
inventou e que rezava assim:
Cana dá e, com a dor, Perú abana e Méxi cú
ou seja Canadá, Equador, Perú Habana e México, o que resume perfeitamente um Continente. De tal forma que aos cinco ou seis anos fiquei um barra em Geografia, com um conhecimento mais que perfeito do sítio de onde ele, e eu por inerência, vínhamos. De modo que os Lobos e os Antunes, eram desde a mais tenra idade
(o que eu adoro a expressão tenra idade)
excelsos especialistas na matéria. Só nunca fui a Habana mas tudo o resto já cá canta. E não apenas na Geografia: a célebre guerra do Paraguai não tinha segredos para mim:
Mamãe
diz ao papai
que eu quero ir para a guerra
do Paraguai
como não tinham segredo as normas da boa educação. O avô aí, teve uma influência decisiva também, ao proclamar que ser educado conserva os dentes e não traz dor de ouvido, o que é profundamente verdade, ou, uma ocasião em que eu fazia chichi de uma varanda alta uma das minhas primas avisou para dentro:
– Mamãe, António está com o negociozinho de fora
o que me faz pensar, inevitavelmente, nas reduzidas dimensões dos banqueiros, que passei a olhar
(continuo a olhar)
com piedade e dó, a mesma com que considero ainda o orifício anal dado que
Um brasileiro muito rico
querendo espantar o mundo
mandou fazer um penico
com uma paisagem no fundo.
Diz-lhe um amigo que louco
para que queres isso tu?
É para alegrar um pouco
o triste olho do cú.
Parte humana que não pode ser muito jovial, dada a triste vida que o obrigam a ter, reduzido a engolir supositórios e clisteres e lançar cá para fora horríveis produtos malcheirosos. Havia também, isso aprendi mais tarde, certas operações sexuais entre homens que culminavam com aquilo a que chamavam o desafogar do ganso, às quais eu, amante dos animaizinhos de pescoço comprido, nunca me dediquei. O Brasil foi fundamental para o refinamento da minha cultura e ainda mais para me impedir de engordar, transformando-me num saco de peidos, ideia que continua a desagradar-me, cheia de som e fúria segundo Shakespeare, e não ouso sequer exprimir-me pelo bem bom que, ainda por cima, não articula muito bem as palavras substituídas por rodados de tractor pavorosos. Quando me deram o Prémio Camões em 2007, o presidente Lula, depois do presidente Cavaco Silva falar, lançou-se numa diatribe nos Jerónimos
– Antônio não é portugueis, ele é nosso
e tenho de concordar que, pelo menos em parte, tem razão. Só me falta cantar a canção da Guerra do Paraguai. Quando vierem mais Camões hei-de gritá-la toda, desde que a cerimónia seja nas águas plácidas do nosso Ipiranga e uma mulata não cesse de me segredar ao ouvido “esse jeitinho dji portugueis”.
(Crónica publicada na VISÃO 1297 de 11 de janeiro)