Hoje é o dia dos anos do meu avô de quem herdei o nome sem lhe ter herdado as qualidades. Ele era muito moreno, eu loiro. Ele era corajoso, eu um maricas pegado. Como era oficial de Cavalaria obrigava-me a andar a cavalo o que eu detestava. Como o meu pai dizia são perigosos nas duas pontas e desconfortáveis no meio. O meu avô era sociável, eu bicho do mato. Alegre e eu nem por isso. Nunca o vi ler um livro, não se interessava nos livros. Dizia-me, desgostoso
– De mim só tens o nome
mas adorava-me e eu adorava-o. Logo que chegavam as férias ia para casa dele. Vinha ao quarto onde eu dormia fazer-me festas e deixava-me bolachas e um copo de água na mesa de cabeceira. A família dele vinha do Brasil, do norte do Brasil, de Belém do Pará. A minha bisavó, mãe dele, chamava-se Leopoldina que era o nome da Imperatriz e deu o nome a imensas meninas daquela época. Ainda conheci algumas das minhas tias bisavós, tia Biluca, tia Marocas, e o meu avô cantava-me canções brasileiras às vezes ou dizia-me versos sobre a guerra do Paraguai. Há uma fotografia dele a andar de triciclo na fazenda do pai. O meu avô encheu a minha infância de amor e chamava-me
– O meu morgado
como se fazia no Brasil daquele tempo. Morava numa casa enorme em Benfica, com um jardim e uma quinta. Ao voltar da guerra em França fez a revolução monárquica de Paiva Couceiro, em 1918, era um jovem capitão, os monárquicos perderam, o meu avô esteve preso na Penitenciária e depois foi para Tânger com a mulher e os filhos pequenos, até voltar a Portugal. Não quis voltar para o Brasil. Quando me deram o Prémio Camões, em 2007, estava eu à brocha com um cancro no intestino, lembro-me do Presidente Lula, no seu discurso, bradar
“Antônio não é português ele é nosso”
e eu, que nunca tinha pensado nisso, não pensei nisso. O meu avô não lia livros mas os que tinha em casa eram brasileiros, Machado, Aluísio Azevedo, Pompeia, Lobato, etc. Como queria ser escritor papei aquilo tudo, juntamente com os versos e as canções para crianças, do Brasil que ele me cantava. Morreu quando eu tinha dezoito anos e o meu desgosto foi
(continua a ser)
imenso. Eu adorava-o. Adorava a sua alegria e adorava a sua bondade. E admirava imenso a sua enorme coragem física, eu que era um chuchu de primeira apanha. Lá me portei mais ou menos bem na guerra em África, penso eu, até recebi louvores e tudo e que foi para mim uma experiência ao mesmo tempo horrível e vital. E amanhã é dia 13. Em pequeno levava-me à Igreja de Santo António, de quem era muito devoto, buscar os cravos habituais que depois distribuía pelos filhos. Hoje é a noite do dia 12, avozinho, e ainda não parei de pensar em si. De irmos a Pádua de carro para eu fazer a primeira comunhão, do seu sorriso, da sua voz. Demorou a acabar: a minha avó disse
– Ele é uma árvore muito forte que custa muito a abater
e aí está o seu enterro no armão, com os soldados, com o oficial, com os tiros. Mal sabia eu que depois teria várias cerimónias assim pelos meus camaradas, mal sabia eu que haveria de discursar junto ao túmulo do Soldado Desconhecido, no Mosteiro. Pode não acreditar em mim
(porque carga de água não havia de acreditar em mim?)
mas gostei de ser militar, sempre me trataram bem, não manchei a sua memória, acho que, onde está, pode ter algum orgulho em mim. É curioso, avô, como passados tantos anos a sua ausência continua a doer-me. Desculpe não ter herdado a sua paixão pelos cavalos. Sou o filho mais velho do seu filho mais velho, e chamava-me, com orgulho, “o meu morgado”, segundo o costume de Belém do Pará. Não sei se preferia que eu fosse brasileiro ou português. Acho que só queria que eu fosse seu neto. E sou. E amanhã é o dia do seu Santo, do nosso Santo, em cujo túmulo espalmou a minha mão ao lado da sua e me pediu
– Promete que se tiveres um filho o trazes a Pádua a fazer a primeira comunhão e lhe chamas António.
E eu prometi. Foi o momento mais solene da minha vida, eu pequeno, o meu avô enorme e os seus olhos escuros cheios de lágrimas.
Agora olhe estou aqui a escrever isto. Eu não me esqueço avô, eu nunca me esqueço. Tenho ali um Santo António e
(isto é segredo)
às vezes rezo-lhe por nós que eu nunca tive a sua bondade e também preciso de alguma proteção. Espero que continue a amar-me. Espero que continue a tomar conta de mim. Espero que amanhã se lembre de irmos juntos à Igreja do Santo e colocarmos a mão na pedra no sítio onde se conta que o Demónio o tentou. Espero
(espero não, tenho a certeza)
que daqui a uns anos estaremos de novo juntos. E vou descansar outra vez a cabeça no seu peito e deixar que me abrace com muita força. Ouviu bem, avô? Com muita, muita força, com toda a força do mundo. E ficamos assim imenso tempo. A gente os dois, senhor.
Crónica publicada na VISÃO 1273 de 27 de julho