Este livro, a tradução da Bíblia por Frederico Lourenço, é um dos mais importantes publicados em Portugal nos últimos muitos anos. Repito: um dos mais importantes publicados em Portugal nos últimos muitos anos. Como leitor tenho de agradecer a Francisco José Viegas que para além de escritor de mérito é uma das figuras fulcrais da nossa Terra no que à literatura diz respeito, quer como difusor dela quer como director de revistas literárias, quer como crítico, quer como editor. Podemos discordar dele: não pode ser-nos indiferente e, coisa muito rara, é intelectualmente honesto. Com a publicação desta Bíblia assina indelevelmente o seu nome no panorama literário português. E agora, se me permitem, vou falar um pouco da obra em apreço.
Eu sou um colecionador e leitor de Bíblias. Devo ter duas dezenas nas línguas em que consigo ler, julgo ter estudado um número razoável de versões do texto sagrado e de comentários a ele, e enche-me de orgulho dizer que não conheço outro trabalho da grandeza deste e da sua altíssima qualidade. Devemos a Frederico Lourenço um texto excepcional, de seriedade e talento imensos. Estou muito à vontade para falar disto porque não conheço o autor, nunca o encontrei, nunca falei com ele, vi, por junto, uma fotografia sua no jornal. Não li os seus romances, não sabia sequer que os tinha escrito, li dois volumes seus de estudos sobre autores gregos que me pareceram sérios e muito bons, apreciei principalmente o que escreveu sobre Eurípedes, um dos meus dilectos
(convém ter imensos dilectos para não ter nenhum)
e a minha amiga Sara Belo Luís ofereceu-me o primeiro e depois o segundo tomo da sua tradução da Bíblia.
A qualidade deste feito é excepcional.
Frederico Lourenço consegue dar-nos a beleza única deste monumento único com uma surpreendente fidelidade e uma capacidade criativa em tudo invulgar. Não encontrei nenhum livro comparável a este, em primeiro lugar no que à escrita diz respeito, transmitindo-nos tanto quanto posso avaliar a sua beleza e qualidade ímpares e acompanhando-as de uma coleção de notas de espantosa elegância, erudição e humildade que honram ainda mais o seu Autor. A orgulhosa modéstia de Frederico Lourenço, o respeito absoluto e a compreensão orgânica do material fazem desta Obra qualquer coisa de único no panorama intelectual português e do homem que a conseguiu uma figura de cumeeira. Nunca tinha, que me lembre, falado assim de um Livro e de um Escritor. Para mim, que sempre tive com Deus uma relação complicada, que tanto me zango com Ele, que às vezes sou tão injusto
(ou talvez não, pode ser que em algumas ocasiões a razão esteja do meu lado)
que me apetece, quando me interrogam acerca da nossa relação, responder como Voltaire
– Cumprimentamo-nos mas não nos falamos
mas este trabalho de Frederico Lourenço fez-me aproximar mais d’Ele e de Cristo, fez-me sentir um orgulho de filho em relação ao Pai e aumentar, no meu espírito, o meu amor por Ele. Eu acho que Frederico Lourenço foi tocado pela Graça e invejo-o por isso, e tenho ciúmes por isso só de imaginar que Deus o prefere a mim, mesmo achando que tem boas razões para tal. Esta Bíblia possui todas as características para perdurar e creio que o autor deste livro português poderá dizer, como Bocage
Isto é meu, isto não morre que, aqui para nós, é o que costumo pensar do que escrevo.
Percebi também que Frederico Lourenço é filho de M.S. Lourenço, que tão pouco conheci mas de quem li alguma coisa. Estava a lembrar-me de uma obra chamada “O guardador de automóveis”, encontrada na adolescência, de que ainda sei alguns versos de cor, por exemplo “aceito Deus uno e trino mas não aceito Deus cabeleireiro de senhoras” ou de um outro que me impressionou muito e continua a impressionar-me: “Porque estais tristes: não me reconheceis?” Peço perdão se cito mal mas é assim que os recordo. Sobretudo este último, que me tem acompanhado ao longo dos anos por razões que não sei ou, antes, creio que sei mas não vou mencioná-las. O importante é esta Bíblia, um grande livro que decerto perdurará muitos, muitos anos na reduzida prateleira da Grande Arte da nossa Literatura, pelo seu rigor, pela sua beleza, pela sua absoluta e luminosa fidelidade. Como português agradeço-lhe do coração.
Como escritor agradeço-lhe do fundo da alma. A Arte não é um desporto de competição a Casa do Pai tem muitas moradas. E sempre achei que a grandeza dos outros aumentava o meu tamanho: muito obrigado por me ter dado alguns centímetros a mais. Agora vejo mais longe. E, além disso, ajudou-me a sentir orgulho no meu trabalho. Isto é meu, isto não morre. Bocage, tradutor do meu querido Ovídio, deve estar cheio de peneiras do Frederico Lourenço.