Lembro-me da Gija. Lembro-me da Arminda. Lembro-me do meu pai fazer 33 anos, uma idade que eu não concebia o que era
(não concebo o que nenhuma idade é)
estava eu com a tuberculose, em casa dos meus avós a fim de não contagiar os meus irmãos, e das numerosas irmãs do meu pai, de garfos e colheres em riste à minha volta, a pedirem-me quase em lágrimas
– Come senão morres, come senão morres
e eu fechava a boca com força ou vomitava o que apesar de mim me enfiavam no bucho.
Estou a ver as caras delas
– Come senão morres
e eu, que não imaginava o que fosse viver ou morrer
(ainda imagino mal)
só queria que me deixassem em paz na cama com a minha febre.
Recusava brinquedos, recusava tudo a começar por mim mesmo, ansiava para que me deixassem em paz a olhar para o tecto, que continua a ser uma das minhas actividades favoritas.
Depois a tuberculose lá decidiu passar mas recordo-me de me sentir muito fraco. Nessa época tinha dois irmãos, o João que nasceu um ano e tal depois de mim e o Pedro que nasceu três anos depois mas, ao princípio, não me deixavam aproximar muito deles, quanto mais tocar-lhes.
Sentavam-me num penico diante do espelho de um guarda-fato
(recordo-me tão bem)
e para ali ficava a dialogar com a criatura no outro lado do espelho.
Acho que é isso o que ainda faço hoje ao escrever: dialogar com a criatura no outro lado do espelho. Qual das duas, ao certo, sou eu? A do lado de cá era canhota, a do lado de lá, era dextra. Nunca nos sorrimos, nunca trocámos uma palavra. Às vezes uma das minhas tias vinha verificar como as coisas estavam mas, no caso delas, a canhota estava dentro do espelho. Molhavam-me a bochecha com um beijinho e despenteavam-me o cabelo com uma festa. Tentava compô-lo: nunca ficava bem, ganhava uma franja loira ainda mais torta.
Depois comecei a andar pela casa, sentindo a auréola do bacio vincada no rabo. Os meus irmãos também tinham, às vezes. Deviam emprestar-nos um desses espelhos pequenos para nos certificarmos se ainda lá continuam. Há alturas em que penso que sim. A seguir principiámos a crescer: o João era loiro também, o Pedro era moreno.
– Os teus manos
explicavam-me
– Os teus manos
de modo que não tive outro remédio senão começar a gostar deles. Depois apareceu o Miguel que fazia covinhas nas bochechas quando ria e tinha o azul de olhos mais bonito de nós todos. E eu comecei a envergonhar os meus pais na escola e a tomar balanço para escrever. Poesia, claro. Péssima, e péssima para um miúdo da minha idade. Péssima e pretensiosa, mas a minha fé que era um génio ia-me ajudando a alinhar bodegas. A minha mãe, sempre indulgente, a quem mostrei aquelas infelicidades avisou-me
-Nunca hás-de fazer nada de jeito
ao que eu respondi, indignadíssimo
– Vai ver
e continuei a alinhar porcarias convictas, até me dar conta que não tinha talento nenhum e fiquei deprimidíssimo. Experimentei umas prosas, igualmente miseráveis, lia que me fartava em lugar de estudar, exercitava-me imitando escritores e o descontentamento com os meus subprodutos durou anos e anos, até se começarem a abrir umas portas que não suspeitava existirem cá no rapaz e eu me meter por elas dentro. Isto deu-me um trabalhão, todos eram melhores do que eu mas eu teimava.
Volta e meia apareciam-me uns desânimos mas não desistia. Não largava; como um buldoguezito que apanhou uma canela a jeito. E passei a Faculdade a rabiscar, repetindo para mim mesmo
– Ainda não é isto
até que um dia, de súbito, a cortina que me separava das palavras se rasgou e a Memória de Elefante, que durante anos e anos não deixei traduzir, apareceu.
O Miguel há que tempos que já não tinha covas nas bochechas ao sorrir e eu principiava a achar-me o melhor do mundo. Uma frase de Michel Audiard, “de onde menos se espera é que não sai nada de jeito”, cessou de parecer-me uma verdade universal. Tenho pena que a Arminda e a Gija me não tenham lido: era da maneira que talvez recebesse um beijinho de cada uma delas, e posso garantir que nunca senti beijinhos tão bons.