Lembro-me de ser criança e ver a minha mãe a dançar o charleston, sozinha, sem música, e eu encantado a vê-la. Era pequenina, bonita, parecia uma miúda, se íamos ao restaurante sozinhos com ela o empregado a recolher-lhe a ementa depois de ela dizer o seu prato perguntava
– E para os irmãos da menina?
Quando a minha mãe estava morta na igreja e os filhos por ali esperei que entrasse um empregado de lacinho e colete às riscas inclinando-se para o caixão
– E para os irmãos da menina?
Mas não veio nenhum. Só gente de olhos pesados, em cadeiras contra a parede, graves, sérios, com apertos de mão graves e sérios, que nunca a viram dançar o charleston. E todo o tempo que ali estive lembrei-me da minha avó, para nós
– Vocês matam a vossa mãe
e eu não percebia como estávamos a matá-la porque não tínhamos vontade nenhuma que ela desaparecesse. Recordo-me de andar com a tuberculose quando o Pedro nasceu, de meter a chupeta na boca do Nuno para tentar calá-lo, do João quase a afogar-se no lago do avô e eu aos gritos, aos gritos. A minha mãe tirava-nos a febre, dava-nos injeções, metia-nos supositórios pelo rabo acima, ensinou-nos a ler. A águia, E não sei, I igreja, O ovo, U uvas. Ata titi ata a tia atou. Como é lindo o triciclo do Antoninho. Uma ocasião disse-me que no tempo em que era bebé lhe doía a boca de me dar beijos. Tinha os olhos verdes e os pés mais bonitos que eu já vi. No Jardim Zoológico existia um casal de hipopótamos, que se chamavam Jorge e Margarida, o nome dela, e eu furioso por o Jorge não se chamar João, o nome do meu pai, que fumava cachimbo. O meu pai, esse, tinha os olhos azuis, penteava o cabelo para trás e se, à mesa, entornávamos água na toalha ordenava
– Pega no prato e vai comer para a cozinha.
Isto ao jantar, já de pijama, depois do banho, porque ele almoçava no hospital. Subia as escadas a quatro e quatro e andava muito depressa. Foi campeão dos patins e havia uma caixa de lata, cheia de medalhas, com que nós brincávamos. Às vezes, aos fins de semana, dormia a sesta no escritório, deitado no chão de barriga para baixo, sem almofada, com a cara no braço. De manhã, enquanto se barbeava, dizia versos ao espelho e a minha mãe num banco a ouvi-lo. As pessoas crescidas perguntavam-me
– Quantos anos tem o teu pai?
eu, com a tal tuberculose, recolhido pelos meus avós para não contagiar os meus manos, respondia
(meu Deus como isto continua)
– Trinta e dois
os grandes, com uma luz na cara
– Que inteligente
a minha mãe tirava-me logo as peneiras
– Não há nada mais estúpido que uma pessoa inteligente
evidência que ainda hoje me acompanha. Esta frase possuía uma variante:
– Tão inteligente para umas coisas e tão burro para outras
o que continua a ser tragicamente verdadeiro. A tia Bia para mim
– Antoninho cravo roxo
eu já grande, e ela tão terna comigo
– Antoninho cravo roxo
ou então a história de um senhor que usava capachinho e a mulher não sabia. Uma noite, estavam os dois a dormir, caiu o capachinho ao senhor e a mulher acordou:
Antoninho Antoninho
Mas que maneiras são essas
Estás deitado às avessas
Com o tutu no travesseiro
e eu amuava sempre, por achar que ela sugeria que eu era careca. Mas adorava-a como adorava a tia Madalena que me tratava, que nos tratava por
– Meu filho.
Bastava um de nós cair com gripe para pedirmos logo
– Mãe chame a tia Madalena
ela vinha sempre e o mundo tornava-se de novo suportável. Deu-nos tanto amor, tanta atenção, tanta bondade. Também gostávamos muito do seu marido, o tio Eloy, que aos domingos à tarde jogava às cartas com as cunhadas e, se lhe calhava um jogo mau na mão, repetia sempre a mesma frase:
– Há muitos anos que sou beleguim e jamais vi uma coisa assim.
Era um advogado importante, vestia-se como um príncipe e nós não concebíamos a família sem ele. A sua influência nos meus irmãos e em mim foi tão grande que o João se tornou do Sporting. Que o tio Eloy fosse do Sporting a gente lá ia aceitando. Porém no caso do João foi sempre um pecado imperdoável, embora houvesse outros casos gravíssimos de sportinguismo na família. Estou no fim desta crónica e acho que a gente, os filhos da minha mãe, tivemos uma sorte imensa com a nossa família. Eram pessoas extraordinárias que nos amavam de todo o coração e nos deram uma infância indecentemente feliz, inclusive a mim que desde sempre vivi atormentado por mil demónios secretos. A minha mãe:
– Nasceste com tudo e nunca estás contente
e de facto não posso queixar-me fosse do que fosse. Nascemos abençoados. Bom, não totalmente: não acham que essa história do Sporting é, no mínimo, esquisita? Ser, como insinuava o meu amigo Artur Semedo, um homem às riscas quando se deve ser homem de uma cor só? Estou a brincar, claro. Ou antes: relativamente a brincar. Não: estou a brincar, pronto. Sou tão parvo que, por paixão, perdoo tudo.