Que será feito do senhor de idade bem vestido, bem penteado, de gravata, que passava o tempo sentado numa cadeira, ao lado da porta do prédio onde morava, a entregar papéis com pensamentos seus a quem subia ou descia a rua? Sempre em silêncio tirava de quando em quando um blocozito do bolso, escrevia qualquer coisa com um fim de lápis, guardava o blocozito e o lápis e continuava, impassível, a olhar em frente. Nunca o vi conversar com ninguém, nunca vi ninguém interessar-se por ele, nunca o vi chegar nem partir. Não acredito que vivesse sozinho, uma pessoa qualquer, uma filha, um filho, não sei, cuidava dele de certeza. E todos os dias ali estava, a distribuir as suas folhas, sem um sorriso, uma palavra, grave, atento, até que, de súbito, desapareceu. Para onde? Não penso que tenha morrido, homens assim não morrem. Quando muito mudou a cadeira para o Céu, onde continua a escrever com o seu finzinho de lápis.
O que será feito da senhora de idade coxa que passeava antes do jantar um cachorro de idade, coxo igualmente, à roda do quarteirão, detendo-se diante da merceariazita dos indianos, cheia de caixotes de fruta cá fora, sempre sem comprar nada? Ela e o cão ficavam apenas a olhar a fruta, recomeçavam a andar, puxando a perna e a pata difíceis como quem arrasta um fardo, demoravam séculos a chegarem de novo ao rés do chão de onde tinham vindo, porque dava por eles a acenderem a luz
(qual dos dois acendia o candeeiro?)
e reparava nela atrás dos caixilhos, com um quadro enorme do Sagrado Coração de Jesus por trás. Depois a luz apagava-se. Para onde iriam?
O que será feito do senhor também impecavelmente arranjado que disparava uma espingarda imaginária, cuidando-se ainda na guerra de África? Matou-me várias vezes com os seus
– Pum pum
matou várias vezes toda a gente do bairro, chamando-nos
– Terroristas
aplicava pontapés ferozes nos caixotes do lixo, mais que defuntos, que já abatera na véspera, informando
– Se não os enterram eles matam-nos
para as fachadas imperturbáveis, devorava o chão a disparar
– Pum pum
empurrando depois, com o pé, um cadáver imaginário
– Turra de merda
e, depois de invisível, continuávamos a escutá-lo
– Pum pum
acabando com toda a gente de Angola, ou da Guiné, ou de Moçambique, que passavam a ser habitados por cadáveres dispersos, estendidos no capim dos passeios. Volta e meia entrava no sítio onde compro cigarros para um bagacito que lhe inflamava o patriotismo, abatia um ou dois sujeitos que cervejolavam ao balcão
– Pum para você, pum para o seu amigo
que permaneciam de nariz rente à espuma em lugar de se despenharem nas cascas de tremoços do chão, enquanto ele, depois de os observar com desdém
– Não sabem que já são cadáveres, os parvos
saía triunfal, de arma apontada ao empregado dos Correios que ia depositando cartas nas frinchas metálicas apesar de ser defunto há séculos
– Esse tenho de acabar com ele todos os dias
que nem se voltava para um olhar indiferente, porque, os mortos, em geral
(há excepções)
têm a mania, sabe-se lá porquê, de não ligar aos vivos.
Pessoas como o senhor de idade, a senhora coxa e o guerreiro fazem-me sempre lembrar Rosa Luxemburgo, que chorava, na rua, pela pobre condição humana, fazem-me lembrar o final de um livro de Graham Green, lido aos treze ou catorze anos e que nunca esqueci. Impressionou-me tanto que se me gravou na memória para sempre. É mesmo a última linha e diz assim, a propósito de uma personagem: “pobre dele. Pobres de nós todos se pensarmos melhor”.
Isto afigurou-se-me tão verdadeiro, continua a afigurar-se-me tão verdadeiro: “pobres de nós todos se pensarmos melhor”. O senhor de idade, a senhora e o guerreiro são eu, somos a gente. Não se imagina a quantidade de senhores de idade, de senhoras coxas e de pobres guerreiros que existe dentro de nós. Não sou uma criatura triste. A vida foi generosa comigo, tenho amigos extraordinários, uma família maravilhosa, gente que gosta de mim. Não possuo uma única razão de queixa, tirando dos dentistas, como toda a gente, que, como dizia Vinicius, sofrem de utilidade e vivem de fazer sofrer. Eu vivo como quero. As pessoas, em geral, simpatizam comigo e eu com elas. Não me cabe o direito a uma única razão de queixa. Mesmo na doença, nas doenças, até hoje tive sorte. Recebi mais do que merecia, continuo a receber mais do que merecia. E, no entanto, às vezes…