Muitas vezes lembro-me dos meus pais. Não se trata de nada de especial, lembro-me só. Não eram especialmente afectuosos um com o outro ou connosco, não havia quase, ou não havia mesmo, manifestações de carinho físico, mas numa ocasião a minha mãe ia a passar pelo sofá onde o meu pai estava, ele estendeu a mão, ela sentou-se ao seu lado e deu-lha e eu para ali parvo a mirá-los, sem saber o que pensar. O meu pai tinha mãos bonitas, que faziam gestos bonitos, não uns cepos como eu.
Agora acabou tudo: éramos uma família, hoje somos pessoas dispersas. Nunca mais pus os pés na casa deles, nunca mais pus os pés na casa da praia, não quis nada que lhes tivesse pertencido. Vivo sem um único objecto seu. Aliás não tenho objectos de ninguém da minha tribo, excepto três ou quatro livros que foram do meu pai, uma biografia de Mozart, uma biografia de Charcot e é tudo. Portanto nem três ou quatro, dois. Dei as fotografias que tinha, dei os papéis e a biografia da família que o meu pai me deixou. Não possuo um único móvel, um único quadro. Porquê? Não sei responder a perguntas, só sei fazê-las, mas há que tempos que não pergunto nada, e muito raramente falo do que sinto. Tento não ser desagradável com as pessoas mas, praticamente, não me dou com ninguém. Quase não falo. O que tenho a dizer digo nos livros, muitas vezes de uma forma oblíqua. Mesmo a propósito da literatura recuso quase todos os convites, para desespero dos editores. Assisto às conversas quase sempre calado. Falar de quê? No meu pai de mão dada com a minha mãe? As pessoas de quem gosto são, cada vez mais, um segredo meu. Tento ser delicado, nem sempre consigo.
A saudade é uma coisa que se tem vindo a apagar cá dentro.
Saudade de quê? Quando o meu irmão Pedro morreu a frase que ouvi à minha mãe foi
– Tenham misericórdia de mim.
É o que mais me persegue. A minha mãe, na sua cadeira, a pedir aos filhos
– Tenham misericórdia de mim.
O sofrimento destas palavras ainda não parou de doer-me.
Mãe. Dizia-lhe versos, lembra-se? Era muito inteligente, a mãe. O que eu desejava voltar para a barriga dela
– Mãe
– O que foi?
– Quero voltar para a sua barriga.
E o sorriso dela quando eu pedi isto, tão sincero.
A varanda para a serra, em Nelas. Os castanheiros. O meu avô, de casaco branco, a ler o jornal. Agora estou a sorrir porque vi o D. João I Borges, o mendigo oficial, a subir a vinha, de barba comprida. Isto, em compensação, conservei tudo. A burra, o Virgílio na carroça, o barulho da bomba da água. O João e eu a partirmos pinhas com uma pedra.
Os Correios, o sol na vila, o nevoeiro da Praia das Maçãs, até aos ossos. Um menino na praia que a avó chamava
– Serafim
e não tornei a ver. O vendedor de barquilhos. Os caranguejos da vazante. O mar à noite, a pousar a cabeça enorme no parapeito da janela do meu quarto, fitando-me.
Luzes de barcos distantes. O meu pai a acender o cachimbo em silêncio. O senhor café, o senhor Franquelim. Também já não há Franquelins. Cigarros às escondidas, uma gaivota sem uma pata. Olha, afinal falo mais do que pensava. Lia Sandokan, soberano da Malásia e adorava. Voltei a ler há uns anos, numa edição espanhola, e continuei a adorar.
Mandrake. Pensava não ter trazido nada de casa dos meus pais e afinal trouxe tanta coisa, gatos vadios, lagartixas, a cozinheira a ordenar
– Largueza
quando tentávamos roçar-nos pelo seu rabo. Cheirava a refogado. Quantos anos teria? Uma velha de vinte e tal ou assim, que nos compreendia as urgências sem fazer queixinhas à minha mãe. Obrigado, Isabel, por compreenderes as minhas urgências dos nove anos, que eu não compreendia e que acabavam com uma caneca de leite e um pão com manteiga.
– Coma, coma, que ao menos enquanto come não me maça.
Ainda hoje não sei se prefiro a Isabel ou um papo seco.
A Avó Querida fingia não ver: obrigado, Avó Querida.
Compreendia-me melhor do que eu e dava beijos óptimos para além de caramelos que não se descolavam do papel.
Deixava-nos fazer tudo e o meu pai, que adorava a sogra, nem pio. Chorei desabaladamente ao vê-la morta, choraria desabaladamente se tornasse a vê-la morta. Afinal falo. Afinal guardei tudo comigo. Os olhos azuis do meu irmão Miguel, redondos, espantados. Ceguinhos de acordeão em Benfica. O jardineiro Marciano que estrangulava passarinhos e extasiava as empregadas. Afinal trouxe tudo, afinal falo do que sinto.
O comboio do meio dia, o comboio das seis, meninas que não me ligavam nenhuma, de tranças. Passávamos a correr, puxávamos as tranças e fugíamos. Atirar pedras a gatos, cortar as caudas das lagartixas, ir escutar o vento ao pinhal, cheio de confidências, segredos e nisto a Avó Querida
– Toino
a chamar por mim. Subia as escadas, perguntava o que era. Ela
– Só queria beijar-te a testa.
De modo que descia outra vez as escadas para os castanheiros, com o rubi dos seus lábios no meu turbante de Sandokan.