Aos doze, treze, catorze anos eu era menino de coro na igreja de Benfica. Ajudava à missa do meio dia, esperava que o prior, com os seus eternos Caríssimos paroquianos irmãos meus acabasse uma homilia interminável, da qual só me ficou esta frase sem cessar repetida Caríssimos paroquianos irmãos meus ansiava para que não houvesse muitos crentes a comungar porque tinha de lhes pôr a bandeja debaixo do queixo a fim de que nem um bocadinho de Jesus se perdesse, via dúzias de línguas de fora e dentaduras de todos os tipos abrirem-se para receberem Jesus e fecharem–se com Jesus lá dentro, num cuidado extremo de não o magoarem e, mal a cerimónia acabava, despia as minhas vestes vermelhas e brancas na sacristia e largava a correr a todo o gás para a Rua Grão Vasco, quase em frente, a assistir ao senhor Machado. A Rua Grão Vasco tinha uma faixa central com amoreiras que a gente apedrejava, na esperança de caírem as folhas suficientes para os bichos da seda que guardávamos no quarto, numa caixa de sapatos, e era nessa faixa central que o senhor Machado colocava a carripana.
O senhor Machado gordo e bexigoso, com o enorme nó da gravata no colarinho desapertado, fato sebento de velho e duplo queixo enorme. Encostava à carripana um escadote um bocado precário, colocava no tejadilho dois ou três caixotes, poisava no ombro um macaco que prendia ao pulso com uma corrente e lhe passeava à volta do pescoço, subia a custo os degraus do escadote, auxiliado por um ajudante raquítico que tratava por Tarzan Ajuda aí, Tarzan as pessoas chegavam a pouco e pouco e amontoavam-se em volta, o senhor Machado olhava-as, solene, lá de cima, fazia um gesto, de palma no ar, a pedir atenção e silêncio e começava, monocórdico, numa voz autoritária e enferrujada, observando a assistência de um degrau precário: Um dia estava eu na Praça da Liberdade chega um cavalheiro à minha beira e diz: você está medalhado.
(Cara de espanto.) Medalhado eu, que não pratico ciclismo, atletismo ou alpinismo? (Mais cara de espanto que desaparecia a pouco e pouco até se tornar triunfal.) Medalhado sim, porque você tirou a bicha do corpo daquela criança, aquela maldita que a roía.
Abria um dos caixotes, acrescentava Ó Pascualina vem cá fora cumprimentar estes senhores e, do caixote, saía uma cobra que, lentamente, se lhe instalava na cabeça, escancarada para nós, de olhos minerais assustando o macaco que o senhor Machado repreendia com uma palmada: Está quieta macaca que já trabalhas.
E para nós, os mais novos da assistência Não deformem a roda, meninos, não deformem a roda.
Inclinava-se para o segundo caixote, exumava, lá de dentro, um frasco com um líquido amarelo e exibia-o em torno, como um toureiro a orelha de um miura: Furúnculo, erisipela, diarreia, bichas, borbulhas, úlceras do estômago, do intestino, do esófago, que é um tubo aqui, do intestino, do cérebro, tudo este extraordinário produto, preparado pelo doutor Henriques, que é professor de médicos em Coimbra, cura em três dias, devolvendo aos infelizes a saúde perdida. Não custa vinte, nem dezanove, nem dezoito e meio, nem dezassete, nem dezasseis. Nem quinze, nem catorze, nem treze, nem doze. Nem onze e meio, nem onze. Custa dez escudos e quem levar esta embalagem leva mais três, esta que é oferecida, esta que é ofertada e esta que é dada, não mencionando um corninho (exibição circular de um corninho de plástico) da minha bisavó que era a bruxa da Arruda. E como a quantidade, está quieta, macaca, não é grande, que já trabalhas, solícito aos elementos da excelentíssima assistência interessados neste maravilhoso produto, que coloquem o braço direito no ar a fim de satisfazermos o seu pedido e devolver-lhes a saúde perdida.
E principiava a entregar as embalagens e os corninhos ao Tarzan, que distribuía aqueles milagres pelos necessitados.
Alguns, pelo sim pelo não, beijavam o corninho antes de o guardar na algibeira ou incluir no fio dos santinhos ao pescoço e a roda ia diminuindo a pouco e pouco até ficar reduzida ao senhor Machado, ao Tarzan, à macaca, à Pascualina, aos caixotes, ao escadote e a mim. O senhor Machado guardava a Pascualina num deles, fechava-os a todos na carripana, com o escadote por cima, atirava a macaca para o banco do pendura, onde o Tarzan a recebia no colo e ia beber um copo solitário à tasquinha perto antes de se ir embora para vender curas noutro lado, e eu em frente dele, a admirá-lo. Parecia vazio, sem o entusiasmo do discurso, muito mais pequeno, insignificante. Os sapatos sem graxa, as meias sem elástico, muito mais rugas do que o senhor Machado de há pouco, cheio de energia e saúde, até que nisto deu por mim quase pegado a ele, a arder de admiração e respeito. Então acendeu uma ponta de cigarro, desapareceu no fumo e, ao regressar, pareceu-me que uma lágrima (pelo menos assemelhava-se a uma lágrima) no canto de um dos olhos. Disse-me baixinho Sou um pobre, compreendes? e fiquei a segui-lo, da porta, até a carripana virar a esquina. Oxalá a bruxa da Arruda o proteja.