O segundo homem mais rico do País, com um património avaliado em 1763,2 milhões de euros, voltou há dias a terreiro para, numa entrevista à SIC Notícias, ensinar o primeiro-ministro a governar. O reputado treinador de bancada de governos sucessivos Alexandre Soares dos Santos tem todo o direito à sua opinião, e, tratando-se de um gestor de sucesso, há, obviamente, todo interesse em ouvi-lo. Isso não significa, porém, que o Sr. Pingo Doce venha comer-nos as papas na cabeça e tomar-nos por imbecis.
Dizer que António Costa está a “comprar o eleitorado” ao querer reduzir o número de horas de trabalho e as taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, e defender a necessidade de se reduzir primeiro a dívida antes de se arrancar para políticas de desenvolvimento é de alguém que ignora a realidade do País. E, já que criou uma fundação para a conhecer, devia socorrer-se mais dos dados que esta disponibiliza antes de falar.
É uma pena que alguém tão brilhante como Soares dos Santos nunca se tenha aventurado a apresentar-se ao eleitorado, deixando o conforto da bancada para descer ao relvado. O Sr. Pingo Doce esteve seguramente demasiado ocupado a gerir as empresas e o património da família, e a engendrar esquemas para pagar o mínimo de impostos em Portugal, através de sofisticados mecanismos de “otimização fiscal”, que reduzem o encaixe do Estado e aumentam o défice orçamental e a dívida pública.
Falar de crime de “evasão fiscal” seria cometer outro. A difamação é punida por lei e eu não estou para ter chatices com a Justiça. Além de que, tecnicamente, os expedientes usados são legais.
O Sr. Pingo Doce e muitos outros nada mais fazem do que aproveitar um sistema legal que permite a passagem de largas centenas de milhões de euros entre os dedos do Fisco, sem para tal ter de se infringir a lei. Muda-se a empresa para um país com um regime fiscal mais brando e aproveitam-se internamente benefícios fiscais – muitas vezes criados por cedências do poder político aos lóbis empresariais.
Só neste capítulo o Estado perdeu receitas fiscais num valor próximo dos 100 milhões de euros, entre 2010 e 2014, a favor de vários ramos do universo Jerónimo Martins – Soares dos Santos – Pingo Doce. Um cálculo (apressado e ao qual pode ter escapado uma ou outra parcela), a partir das estatísticas do Ministério das Finanças (pode consultá-las clicando AQUI), levou-me à módica quantia de noventa e seis milhões trezentos e oitenta e dois mil trezentos e vinte e dois euros e vinte e dois cêntimos.
Peanuts num orçamento do Estado, dirão os acrobatas da folha de Excell. Mas, se colocarmos os amendoins em perspetiva, entendemos o que essa “pipa de massa” representa. Equivale, por exemplo, ao investimento feito, há uns anos, no Hospital de Loures e que a multinacional alemã Bosch está a fazer nas suas fábricas de Ovar, Aveiro e Braga, criando aí cerca de mil novos postos de trabalho, além dos 3 800 já ali existentes.
Com isto não estou a negar que o Grupo Jerónimo Martins tenha investido, desde 2008, perto de mil milhões em Portugal. Mas não deixa de ser escandaloso que o Fisco, ao mesmo tempo que leva o pequeno empresariado ao desespero e suga o cidadão comum até ao tutano, permita às grandes empresas uma “fuga” de somas tão pornograficamente estratosféricas.
Quem como eu, cidadão medianamente remediado, a quem a crise já obrigou a delapidar boa parte das poupanças e a reduzir para metade os trocos que punha no PPR, não pode deixar de considerar tais valores uma obscenidade.
Para qualquer cidadão vulgar de Lineu obter uma poupança semelhante à que o Sr. Pingo Doce obteve, em cinco anos, só à pala de benefícios fiscais, teria de conseguir pôr mensalmente de lado 500 euros, durante os próximos 16 063 anos. Ora eu nem nos meses em que recebo subsídio de Natal e de férias conseguiria pôr de lado metade disso. Teria de despedir a mulher-a-dias, desinvestir na educação das minhas filhas, deixar de tomar café, gastar esporadicamente seis euros numa ida ao cinema, jantar fora de quando em quando, trocar o carro pelos transportes públicos a caminho do trabalho (passar de 20 minutos para 90 minutos de deslocação, na melhor das hipóteses). Ainda que admita deixar de fumar e que o Dr. Soares dos Santos e acólitos continuem a acusar-me de viver acima das minhas possibilidades, por ser daqueles que não têm hipótese de não descontar sobre cada tostão que ganha, não estou para tanto sacrifício. Muito menos durante tantos milhares de anos.
E desenganem-se aqueles acreditam que a poupança fiscal gerada é para reinvestir e gerar riqueza. Gerar riqueza talvez. Mas não para beneficiar o País, pelo menos não aquele em cuja governação o Dr. Soares dos Santos mete de quando em quando o bedelho, arrotando a posta de pescada do “não há alternativa”.
Mais de oitenta milhões dos tais 100 milhões de benefícios foram, como atestam os dados do Ministério das Finanças, para sua holding familiar, a Sociedade Francisco Manuel dos Santos SGPS, o maior acionista do Grupo Jerónimo Martins.
O ano mais chorudo nessa matéria foi o de 2012 (€79,9 milhões). Curiosamente, no dia 30 de dezembro de 2011 tinha sido anunciado que a Sociedade Francisco Manuel dos Santos SGPS, com sede em Lisboa, “vendera” os 56% do capital detido no grupo a uma empresa chamada Sociedade Francisco Manuel dos Santos BV (controlada, obviamente, também pela família) mas sediada num país com um regime fiscal mais compatível com as necessidades do Sr. Pingo Doce – a Holanda.
O Dr. Soares dos Santos tem todo o direito a ter as suas opiniões. Por muito que eu discorde delas. Não tem é o direito de insultar arrogantemente a inteligência de milhões de portugueses que trabalham e fazem os devidos descontos sobre salários, em grande medida parcos. Isso quando ele tem sido um dos grandes beneficiados pelo esquema que é um dos maiores motores das desigualdades em Portugal. Um país, onde, como o gráfico abaixo atesta, é cada vez maior a percentagem da população a sentir dificuldade em fazer com que o dinheiro chegue para cobrir as necessidades, ao passo que os que o fazem com grande facilidade são cada vez menos. Haja um pouco de decência.