Tinha uns nove anos, talvez. Estava na mesa do café central com a minha avó, onde todos os dias se juntavam as senhoras da terra para o chá da tarde. Sentada na mesa ao lado da nossa, a minha catequista, com o ar grave do costume. Na minha memória, ficou gravado como um dia de inverno, mas não posso garantir a estação do ano. Só posso atestar que o pedinte que entrou tinha um ar triste, esfomeado, unhas grandes e sujas. Que era velho, e que andou de mesa em mesa a pedir “qualquer coisinha”. “Qualquer coisinha”, nunca mais me esqueci destas palavras. Como nunca mais me esqueci da forma como a minha catequista o enxotou da mesa, quando ele insistiu na prece, perante a recusa dela em dar “qualquer coisinha” que fosse.
Todas as semanas, ouvi dela as virtudes de ser generosa e abnegada. Durante meses a fio explicou-nos que não devíamos comer doces e gelados, e que tínhamos de guardar esse dinheiro para dar aos pobrezinhos. Insistia com fervor que era preciso juntar todas as moedas que nos oferecessem para meter num envelope e entregar na missa do domingo, a pensar nos outros meninos sem nada para comer. Adiantou, para bem das nossas almas, que Jesus ia ficar muito triste com quem não cumprisse, e sabe-se lá o que nos podia acontecer. Tudo coisas que ela, como bem comprovei naquela tarde com olhos arregalados de espanto, esquecia imediatamente assim que saía da sala bafienta no rés-do-chão da Igreja.
Tive, aos nove anos, a minha primeira desilusão com a Igreja Católica, numa relação de altos e baixos, várias zangas e pazes feitas com a prática e a doutrina cristã. Foi esta cena na minha cabeça que ajudou a, em teenager, mergulhar numa fase agnóstica, em que citava o Anticristo de Nietzsche, devorava livros sobre o Big Bang e a origem do mundo e via Deus como uma invenção do Homem para explicar o indecifrável e apaziguar as mentes fracas. Mais tarde percebi que uma árvore não faz a floresta, que há gente boa e má na Igreja Católica como em todo o lado, e que Deus é um mistério muito mais íntimo e profundo que um conceito filosófico ou científico.
O que me marcou, porém, para sempre com este episódio foi o valor da compaixão como bitola da nobreza humana. Exijo de quem gosto que se sensibilize com o sofrimento alheio. Admiro profundamente quem se mobiliza para o minorar. Desprezo quem seja insensível à dor dos outros e ponha sempre os seus interesses, mesmo os mais remotos e vagos, em primeiro lugar.
Por estes dias, importa mais do que nunca falar de compaixão na Europa. Sabemos que desde a segunda Guerra Mundial que o Velho Continente não era confrontado com tamanha crise humanitária. Mas nunca é demais recordar os números: a ACNUR antecipa que 1,4 milhões de refugiados que fogem dos conflitos na Síria, Iraque, Afeganistão e outros países cheguem à Europa entre 2015 e 2016 através do Mediterrâneo. Pelo caminho, muitos morrem no mar. Só este ano e até Setembro perderam a vida 2.760 migrantes na travessia.
É por isso incompreensível para mim que tanta gente se mobilize para criticar quem quer ajudar estas pessoas. Ouvi ontem, na Conferência da Visão Solidária, (uma edição especial que chegou esta semana às bancas) Rui Marques explicar que a Plataforma de Apoio aos Refugiados, da qual foi o mentor, tem vindo a ser bombardeada com mensagens de ódio desde os ataques terroristas de Paris. João Manzarra contou que recebeu milhares de mensagens de ódio pelas redes sociais, depois de se saber que se juntou à caravana “Famílias como as Nossas” para entregar bens doados e recolher uma família síria.
Inquieta-me que se possa confundir as vítimas com os agressores, quando os refugiados fogem precisamente do terrorismo e da guerra. Impressiona-me como tanta gente, mesmo até perto de mim, argumente contra a vinda destas pessoas para Portugal, com total indiferença à sua dor. Indigna-me que não se revejam naquelas vidas e naquelas histórias, que não imaginem que pudessem ser as suas e aquelas crianças mortas no mar os seus filhos.
Compaixão, mais do que nunca, precisa-se. Devia ser mais ensinada nas escolas, como mais valorizada e mais recompensada na sociedade. E nomeados heróis os que, como Maria Helena Freitas e Hugo Martins (este ano premiados pela Visão Solidária), lutam contra uma maré de indiferença. Bem hajam!