Já dizia Maquiavel que “todos veem o que pareces, poucos percebem o que és”. Se a essência é tudo, em política a aparência tem muita força. As circunstâncias são excecionais, dirão muitos, mas certos valores não podem ser beliscados sob pena de se perder a essência. Na sua voragem pró-Leave, em menos de dois meses como primeiro-ministro, Boris Johnson atirou os conservadores para um populismo radical de consequências imprevisíveis. Nada que seja propriamente uma surpresa para quem acompanha a política britânica. Boris sempre foi errático, impetuoso, excêntrico, superficial… Tudo traços de caráter que devem ser alertas vermelhos para um político. Não serviram de nada e o resultado está à vista.
Nas últimas semanas temos assistido a uma angustiante voragem que culminou na suspensão do Parlamento britânico no dia de fecho desta edição. Uma manobra que visa impedir os trabalhos até dia 14 de outubro, duas semanas antes da data anunciada de saída da União Europeia, e assim boicotar qualquer escrutínio. Uma decisão que levou já ao pedido de demissão do speaker da Câmara dos Comuns, o mediático John Bercow, e a uma forte agitação e protestos de deputados no momento formal da suspensão. Uma vergonha antidemocrática foi o que lhe chamaram, e não é caso para menos.
Um subterfúgio delineado pelo tenebroso Dominic Cummings, o estratega que aconselha Boris Johnson e que é o verdadeiro engenheiro do caos, como lhe chamámos na edição passada. Cummings, que se lembrou de utilizar o mecanismo da suspensão parlamentar, prevista para contextos completamente distintos, tem margem de manobra total para definir a forma de consumação do divórcio com a UE. Não olha a meios para atingir os fins, mesmo que os fins sejam bastante diferentes daqueles que foram referendados pelo povo britânico há dois anos. Uma coisa é sair da União de forma pacífica, outra bastante distinta é fazê-lo sem acordo, com consequências económicas e sociais completamente imprevisíveis e potencialmente desastrosas.
Pelo caminho do caos desenhado por Boris e por Cummings, assistimos à metamorfose de um partido. Foram purgados mais de 20 membros moderados, incluindo sete ex-membros do Governo e um neto de Churchill. Johnson é um homem que claramente não convive bem com a oposição interna. A verdade é que os conservadores ingleses já não são hoje o que eram: a toada populista tomou completamente conta do discurso. Em boa verdade, pouco mudou na cultura dos tories nos últimos 40 anos, desde que Thatcher entrou no número 10 de Downing Street com os seus ideais liberais de mercado livre, de individualismo e unionismo. Num quadro político mundial onde tudo está a alterar-se, em que as classes mais educadas e ricas tendem a aproximar-se de territórios da esquerda e as mais pobres da direita, atraídas pelo discurso mobilizador simplista e nacionalista, há mudanças substanciais em curso. O problema no Reino Unido é que ao centro parece agora não estar lá ninguém: os conservadores deixaram de ser moderados e de querer conservar seja o que for e, quais perigosos radicais, esfarraparam a Constituição, ao mesmo tempo que o Labour de Corbyn fugiu do eixo tradicional para a esquerda radical, tornando-se um partido mais vermelho e também mais verde. O que vai ficar depois deste terramoto político, é esperar para ver. Mas tudo indica que não será bonito.
Por cá, ensaiam-se metamorfoses que estrategicamente se afinam em tempos de eleições. São notórios os laivos populistas do PP de Assunção Cristas e de Nuno Melo (como já o eram em Paulo Portas, mas embrulhados de forma mais inteligente), que usam o povo à boca cheia ao mesmo tempo que fazem por o atemorizar. Como são curiosas as investidas centristas de um Bloco de Esquerda que sublinha o programa “social-democrata”, para dar gás à estratégia de vir ao meio roubar eleitores e assim tentar evitar a maioria absoluta de António Costa. Metamorfoses há muitas. Resta saber se resultam em borboletas…ou em traças.