Podemos (e devemos!) acusar as fake news, os argumentos falsos e os discursos incendiários, espalhados nas redes sociais para fazer aumentar a raiva e destilar o ódio, como responsáveis pelo crescimento da intolerância, do populismo – e, como consequência, pelo enfraquecimento, cada vez mais acelerado, da democracia e dos valores humanistas que pensávamos já estar enraizados e consolidados nas sociedades modernas. Mas não chega. Se queremos, mesmo, proteger a democracia e continuar a pugnar pela liberdade, pela igualdade de oportunidades para todos os cidadãos e por uma sociedade mais justa, precisamos de olhar para muito mais fundo, para a verdadeira origem do problema, para aquilo que, na verdade, faz acionar as armas com que os discursos radicais e populistas tentam depois impor os seus “salvadores da pátria”, com discursos autoritários e soluções milagrosas, com as consequências desastrosas que a História nos recorda.
A origem principal do populismo, o seu campo de sementeira, está na impunidade com que, ao longo dos tempos, se vão mantendo situações gravosas, algumas mesmo criminosas, para a sociedade e, no fundo, para a nossa confiança nas instituições que deviam ser o cimento de união do Estado e da nação. O populismo só ganha terreno quando os cidadãos deixam de acreditar na democracia – por culpa de quem não soube defendê-la, protegê-la e mantê-la ao nível das expectativas que todos tinham sobre ela.
O que se soube, na última semana, sobre a governação da Caixa Geral de Depósitos, ao longo de anos e anos, com sucessivos gestores a delapidarem o património do banco, com empréstimos sem avaliação de risco ou qualquer garantia plausível, é um daqueles casos que, só por si, minam a confiança das pessoas na democracia. Por uma razão óbvia: porque, ao longo de décadas, todos suspeitaram de que as coisas se passavam exatamente assim, numa aliança de interesses entre os partidos que iam dividindo o poder – e com os gestores, todos os anos, a receberem prémios de desempenho e “votos de confiança”, mesmo quando os números eram cada vez piores e catastróficos. Em todo o “arco do poder” ninguém pode dizer que não sabia o que se passava. O relatório preliminar da EY à auditoria da Caixa apenas veio pôr nomes e revelar, com maior riqueza de pormenor, aquilo de que, no mínimo, já se desconfiava: que a Caixa foi sendo usada, sugada, para a defesa de interesses próprios, através de uma lógica de encobrimento em que todos se protegiam uns aos outros. Exatamente o contrário dos valores que, repito, devem ser subjacentes a uma democracia.
Já sabemos que, ao longo dos próximos tempos, este assunto vai ser motivo de confronto entre partidos e um dos temas das campanhas eleitorais que se avizinham. Mas não é a gritaria que vai remediar a descrença na democracia, a falta de confiança nas instituições e no sistema parlamentar. Assim como também as muitas comissões de inquérito criadas em São Bento nunca conseguiram restituir a confiança na Justiça ou dar a garantia de que, no futuro, algo possa funcionar de modo diferente, aprendendo com os erros cometidos.
É por isso que o risco maior desta história da Caixa é o de a atual indignação se transformar, passadas poucas semanas ou meses, em algo normal e corriqueiro – que já nem merece uma indignação séria e consequente. Em apenas mais um capítulo de uma história triste, onde estão o BES, o BPN, uma série de outros negócios estranhos e privatizações nebulosas. Mais uma acha na fogueira de desilusão com o sistema e de perda de confiança nas instituições – mas também a nossa caixa negra, de memória futura, para irmos perceber onde tudo começou, em caso de desastre.
(Editorial publicado na VISÃO 1352 de 31 de janeiro de 2019)