Há pouco mais de um ano, escrevi uma reportagem sobre o mercado negro da eutanásia em Portugal, que me marcou. Tive a dica de que havia portugueses a matarem-se com acesso a barbitúricos letais comprados na internet. Por puro desespero, doentes terminais viam-se obrigados a encomendar uma droga online e a suicidarem-se de forma indolor porque não queriam continuar a viver sem dignidade. Cheguei à fala com vários intermediários para ver como funcionava este comércio fatal. A conversa era sempre fluida, a resposta pronta. “O transporte é meticulosamente planeado. Também fazemos embalagem discreta, nenhum animal ou autoridade pode identificar o que está no pacote. Tem 100% garantia de obter o objetivo. Recomendo que tome a droga líquida e se certifique de tomar duas garrafas de 100 ml ou uma garrafa de 250 ml para ter certeza do efeito. Com apenas 100 ml, você pode obter um coma com graves danos”, resumia-me um dos vendedores, que se despedia da forma mais improvável possível neste contexto, sugerindo “uma parceria de longo prazo”.
Numa matéria tão difícil como a eutanásia, que me suscita muito mais inquietações do que convicções absolutas, este trabalho foi para mim revelador. Temos dificuldade em pensar e em debater a morte, porque não queremos olhar a morte de frente. Não queremos equacionar a agonia que a antecede. Preferimos pensar nos caminhos alternativos, no alívio da dor, na despedida tranquila, na saída natural e limpa. Mas a vida tem a teimosia de nos empurrar para caminhos desoladores e de nos levar ao limite. E o limite dos limites, por vezes, pode mesmo ser desejar a morte. Fria e racionalmente, querer morrer. Ao ponto de fazer viagens de avião para longe para falecer com dignidade ou de a encomendar pela internet.
Não é aceitável que o debate sobre a eutanásia se situe ao nível das convicções pessoais (tal como aconteceu em grande parte no debate sobre o aborto) e não ao nível dos princípios. E em matéria de princípios, o mais absoluto de todos deve ser o da liberdade. O direito inalienável a viver como se quer. E porque a morte faz parte da vida, a morrer também como se quer. Não podem existir territórios pessoais sagrados, da ordem da crença ou da religião, a orientar as regras que definimos em sociedade para esta matéria de valor absoluto. Não imponhamos aos outros as nossas crenças e certezas, não olhemos os outros pelos nossos olhos. Cada qual deve poder dispor de si, e todos os caminhos e opções devem ser respeitados. Mesmo os que possam colidir frontalmente com os que escolheríamos para nós.
É este distanciamento que nunca se conseguiria alcançar num referendo sobre a eutanásia – hipótese que, em qualquer circunstância é de recusar – hoje e sempre. Se os referendos têm a vantagem de conceder legitimidade democrática a ideias por vezes controversas, não podem ser uma opção em matéria de direitos, liberdades e garantias. Se, por absurdo, hoje se referendasse a pena de morte, temo bem que ela pudesse ser aprovada – e isso seria um enorme retrocesso civilizacional. Mesmo que todos concordassem na prática de um crime ou na violação de um direito, isso não faz desse crime um ato legitimado.
Dito isto, não creio porém que esteja feito o debate inteligente e sereno sobre a eutanásia de que o País precisaria para ela ser aprovada e implementada de forma tranquila. Falta-nos maturar a ideia, explicar bem os conceitos, destrinçar confusões e afastar os temores que são atirados como argumentos para demonizar esta opção de vida. Sublinho, opção de vida. Só depois disso – algo essencial para se dar a eutanásia ao preconceito – estará o poder político, com a legitimidade que o sistema democrático obviamente lhe confere, em condições de legislar bem sobre este assunto.
(Editorial da VISÃO 1317, de 30 de maio de 2018 – Nota: esta crónica foi fechada na segunda-feira, antes da discussão e da votação dos projetos de lei sobre a eutanásia.)