Um amigo que trabalhou anos a atender ao público costuma dizer que o pior que lhe podia acontecer num dia de enchente era aparecer no balcão o que ele chamava “agitador de fila”. Aquela pessoa que, descontente por estar à espera ou por ser mal atendida, começa a mostrar a sua indignação e a falar a quem está ao seu lado, sem escandaleiras nem berros. Num ápice, a indignação generalizava-se, contaminando todos à sua volta e era impossível de conter o rol de reclamações gerais.
O PS e os velhos amigos de Sócrates só precisavam de um destes agitadores de fila para, num ápice, poderem fazer aquilo por que há muito esperavam: demarcarem-se, finalmente, do ex-primeiro-ministro. Uma vez aceso, o rastilho rapidamente pegou fogo e fez explodir a bolha de silêncio, azia e acrimónia. Em duas semanas, José Sócrates passou de incómodo assunto tabu “da ordem da Justiça” a uma espécie de cão sarnento de quem todos se querem afastar. A sobrevivência política e a lavagem de imagem pública são feitas destes momentos embaraçosos para todos os intervenientes.
Surgiram as mais variadas explicações para o fenómeno: uns garantiram que a gota de água foi a descoberta de mais um elo que fecha o círculo desta alegada corrente de corrupção política e económica – a história de Manuel Pinho e das transferências que terá recebido; outros dizem que foi toda uma estratégia de comunicação montada por António Costa para livrar o partido deste lixo tóxico e preparar as próximas eleições legislativas. Outros ainda acham que a fome se juntou à vontade de comer: a estratégia de defesa parece tão inquinada que não há defesa possível (até o advogado João Araújo saiu do processo em abril) e, por isso, mais vale saltar do barco já para não ir ao fundo com ele.
Pouco importa, na verdade, qual a explicação para o timing deste afastamento ao pontapé do “cão sarnento”. Finalmente, a discussão pública em torno de José Sócrates está onde deve estar: na ordem da moral e da política, mais do que ao nível da Justiça. Aconteça o que acontecer ao processo judicial, incluindo uma absolvição por falta de prova, de uma coisa o ex-primeiro-ministro, o PS e a democracia portuguesa não se poderão livrar: do juízo fatal de ter tido um dirigente que viveu por vários anos às custas de um amigo empresário, que recebia molhos de notas às escondidas e que mentiu aos portugueses em diversas vezes sobre a sua condição e fortuna. E só isso bastaria para que, há muito tempo, o partido e as pessoas de bem à sua volta se tivessem demarcado dele. Não há decisão judicial, mas não estamos longe da desonra democrática a que se referiu António Costa.
Se todos estes indignados pós-Socráticos eram só, afinal, crédulos, tontos ou verdadeiramente ignorantes das relações suspeitas, dificilmente se saberá. Judicialmente, essas responsabilidades deverão ser-lhes assacadas caso se provar que foram cúmplices. Já moral e politicamente nada nos impede de julgar se é aceitável que tenham ignorado aquilo que, em princípio, estariam obrigados a saber ou seria expectável que soubessem. Esta meada em torno de José Sócrates, Ricardo Salgado e outros ex-Donos Disto Tudo parece ter um fio interminável, e é bom que não se pare de puxá-lo. Custe a quem custar.
Lembremo-nos disto quando em breve for discutida no Parlamento a lei que vem regulamentar a legislação comunitária sobre a proteção de dados, que entra em vigor no fim do mês. Nos moldes como está desenhada (espera-se que impere o bom senso e seja alterada), os jornalistas não poderão escrever sobre pessoas envolvidas em processos judiciais, a menos que tenham a autorização dos próprias. Se já estivesse em vigor, estaríamos, pois, anos sem conhecer nada acerca dos “financiadores” de José Sócrates e das suas “amizades”, até à existência de uma acusação formal. Mas contá-lo não só é a obrigação profissional de quem tem de se pautar pelo interesse público como também é um dever moral.
(Editorial da VISÃO 1314, de 10 de maio de 2018)