A civilização que inventou a democracia foi a mesma que criou os Jogos Olímpicos. Mas não foi por culpa dos antigos gregos que começámos a misturar a discussão desportiva com o debate político, a trocar o fervor clubístico pela discussão de ideias, a confundir o púlpito com a arena. Esse é um fenómeno bem recente e, em certa medida, responsável pelos discursos irados e crispados em que o mundo parece ter mergulhado nos últimos tempos – como bem atestam os relatos saídos das cimeiras da NATO e do G-7, em que Donald Trump terá irrompido perante os aliados europeus com a fúria típica dos presidentes de clubes quando anunciam cortes de relações com os dirigentes adversários, só para acalmar (ou instigar) os ânimos das claques.
Em vários desportos, como forma de evitar as discussões intermináveis, as acusações incendiárias e, acima de tudo, tentar proteger a verdade dos factos, começou-se a utilizar a tecnologia como árbitro. Tem sido um processo lento, mas seguro: foi graças às cronometragens eletrónicas que passámos a perceber quem era mesmo mais rápido nas piscinas ou nas pistas e foi o photo-finish que permitiu acabar com as discussões sobre quem cortou primeiro a meta. De forma perentória: se a máquina o mostrava era porque tinha mesmo de ser verdade.
A situação complica-se um bocadinho mais quando a decisão implica interpretação: quer das regras do desporto quer do que de facto ocorreu. É o que acontece com o videoárbitro, que agora chegou ao futebol, depois de se ter celebrizado no râguebi, mas também em desportos de combate como o judo e o taekwondo. No fim, apesar da máquina, a decisão será sempre tomada por um humano, sustentada em imagens que podem ou não esclarecer o resto dos espectadores. Embora não vá resolver (de longe…) todos os problemas e situações duvidosas, o videoárbitro, tal como as técnicas anteriores, tem uma enorme vantagem: aumenta a transparência sobre o processo de decisão.
E, nesse sentido, faz falta à democracia um videoárbitro: um meio independente que zele pela transparência, que mostre, sem subterfúgios, como as decisões são tomadas e que nos torne a todos testemunhas dessas mesmas decisões. Mas os tempos não estão fáceis para que isso aconteça, é preciso reconhecê-lo, quando se observa como o grau de intolerância vai subindo de dia para dia. Basta ver o que acontece, tantas vezes, quando são divulgadas estatísticas e resultados económicos, por organismos reputadamente independentes, e que, por isso mesmo, deveriam ser encarados com a mesma fiabilidade de um photo-finish ou de um cronómetro eletrónico: rapidamente, consoante os casos, os vários lados da barricada saem a público a gritar contra a manipulação de números, invocam algarismos escondidos ou truques “extraordinários” só conhecidos entre “amigos”. Com os mesmos argumentos que utilizariam se estivessem num daqueles programas de discussões estéreis, mas incendiárias, que alimentam as horas dos “futeboleiros” quando não está a dar futebol.
Os tempos também não estão fáceis porque o acesso generalizado das pessoas à informação, graças às novas tecnologias, não significa, infelizmente, que elas tenham passado a estar melhor informadas. E, como as redes sociais demonstram em permanência, também não passaram a ser mais tolerantes – antes pelo contrário.
E, finalmente, os tempos também não estão fáceis porque o videoárbitro, que já tinha sido inventado nas nossas sociedades, está cada vez mais fraco e em risco. Chama-se imprensa livre e independente e, por alguma razão, foi sempre o alvo dos que querem esconder a verdade. Agora, essa imprensa está também cada vez mais condicionada economicamente pelos algoritmos dos grandes gigantes tecnológicos, que se tornaram os principais distribuidores de informação. E, com isso, é a democracia que fica em risco.