“Faça promessas de todo o tipo. As pessoas preferem uma mentira de conveniência a uma recusa direta. A campanha deve ser competente, digna, mas cheia de vida e de espetáculo, o que tanto atrai as massas. Também não fará mal se os lembrar de quão desqualificados são seus oponentes, acusando-os de crimes, escândalos sexuais e corrupção em que poderão estar envolvidos.”
Estas palavras, de tão atuais, podiam ser de um qualquer spin doctor que geriu as grandes campanhas políticas em 2016, do Brexit ao Trump. Mas não: foram escritas por Quinto, irmão de Marco Túlio Cícero, como conselhos práticos para este ganhar as eleições para o mais alto cargo da República em 64 a.C. Nesta carta (que alguns estudiosos disseram entretanto ter sido escrita por outros pensadores da época e não pelo próprio Quinto), intitulada Commentariolum Petitionis, ou Pequeno Manual de Campanha Eleitoral, carregada de múltiplos conselhos práticos para cativar o voto dos cidadãos, não podia faltar a “necessária” arte da mentira. Nestes fragmentos intemporais de sabedoria política, advoga-se de tudo para chegar ao poder: meias-verdades, maledicências, insinuações falsas e mentiras cabeludas.
Dois milénios depois de Cícero (e alguns séculos depois de Santo Agostinho, Maquiavel, Voltaire ou Nietzsche andarem também às voltas com estes conceitos), são tentadores os paralelismos em matéria de transparência e ética: olhando para o mundo em 2016, este parece ser de facto o Ano da Mentira. Trump, o grande mestre da aldrabice descarada, garantiu que viu muçulmanos celebraram a queda das Torres Gémeas; atirou para a praça pública que pouparia 300 mil milhões num programa de medicação que custou afinal 78 mil milhões; argumentou depois de eleito que “milhões de pessoas” votaram ilegalmente em Hillary Clinton. No Reino Unido, autocarros ostentaram durante dias a fio o maior argumento pró-Brexit – o de que o Reino Unido pagava 350 milhões de libras todas as semanas à União Europeia que podiam ser afetos ao sistema nacional de saúde – quando ambas as alegações eram absolutamente falsas.
O pior é que, como dizia Churchill muito antes das redes sociais funcionarem como acelerador de uma escalada global, uma mentira dá a volta inteira ao mundo primeiro que a verdade consiga vestir as calças, e, apesar de todos os desmentidos, faz ganhar votos e atrair o eleitorado descontente. Afinal, uma falsidade fácil de entender é muito mais sexy do que uma realidade complexa – não era Gorki que alegava que por vezes a mentira exprime melhor do que a verdade aquilo que se passa na alma? Mal saem, claro, os media, os fact checkers por excelência do sistema democrático: ou não desmentiram as falsidades na hora certa e de forma veemente e, ou, pior ainda, são hoje tão pouco convincentes que pouca gente liga ao que dizem.
Por cá, o espetro da falsidade também pairou, ainda que muito discretamente, num pacificado panorama nacional [ainda esta semana Cristas acusou o primeiro-ministro de “adotar uma postura de mentira”, mas o ano foi pouco crispado – a VISÃO titulou 2016 em Portugal o Ano do Afeto]. Da proposta de Orçamento do Estado que ocultava alguns dados essenciais e que anunciou um aumento orçamental de 3,1% na Educação quando face ao executado (a comparação sempre usada no passado) representava um corte de 2,7%, aos quatro assessores deste Governo que diziam ser licenciados quando afinal não o eram, vários factos vieram desmentir alegações públicas.
No Ano da Mentira ou da Pós-Verdade (palavra do ano para o dicionário Oxford), outro marco crucial foi a generalização do fenómeno das notícias falsas no Facebook. Quem não se comoveu há dias com a história da criança moribunda que morreu nos braços do Pai Natal? E quantos não foram os que acreditaram na história de que o fundador da Corona tinha deixado, depois da sua morte, 200 milhões de euros aos residentes da sua terra natal? Ou na de que Clint Eastwood ia passar a viver em Hot Springs no Arkansas, que gerou um frenesim na região? (Eminem, Ryan Gosling, Rihanna, Jim Carrey, Samuel L. Jackson, Justin Bieber e Brad Pitt também se mudariam ao longo do ano para outro sítio qualquer…) Uma rede de 40 sites gerou mais de 750 notícias falsas que se tornaram virais, contaminando, na voragem do clique e da última hora, meios de comunicação em todo o planeta. Às portas de 2017, num mundo onde floresce a repugnante mentira, nunca foi tão importante adubar e zelar pelos factos.
Artigo publicado na edição 1242 da VISÃO, de 22 de dezembro